Curta nossa página


Ideologias e interesses

Diplomacia não é torcida: eleições vizinhas raramente mudam o cenário

Publicado

Autor/Imagem:
Lamartine Teixeira - Foto

Em períodos de intensa polarização política, tornou-se quase automático interpretar o resultado de eleições em países vizinhos como uma vitória ou uma derrota indireta para o governo brasileiro. Quando um candidato identificado com a direita, a extrema direita ou mesmo com a esquerda vence um pleito na América do Sul, parte do debate público apressa-se em classificar o fato como “bom” ou “ruim” para o Brasil, como se as relações internacionais se orientassem exclusivamente por afinidades ideológicas ou simpatias pessoais entre governantes. Essa leitura, além de simplificadora, costuma ignorar a lógica que de fato estrutura a política externa dos Estados.

Tomemos o caso da Argentina. À primeira vista, alguém poderia afirmar que a vitória de Javier Milei foi negativa para o Brasil, especialmente diante do evidente desconforto pessoal e político entre os dois presidentes. No entanto, quando se desloca o olhar para o que realmente importa do ponto de vista econômico, percebe-se que houve pouca mudança concreta. Brasil e Argentina continuam interessados, por exemplo, em um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Nesse aspecto específico, a eleição de Milei não representou um obstáculo e, em certa medida, pode até ser considerada favorável aos interesses brasileiros. As tensões retóricas e o distanciamento pessoal existem, mas não alteraram substancialmente os interesses estruturais dos dois países.

Algo semelhante tende a ocorrer com o Chile. O presidente eleito no último domingo é reconhecidamente vinculado à extrema direita, o que pode levar o país a adotar posições distintas das do Brasil em fóruns internacionais, gerando discordâncias pontuais. Ainda assim, isso não significa, de forma automática, uma deterioração das relações bilaterais. O que determina a qualidade dessas relações não são afinidades ideológicas, mas os interesses permanentes do Estado chileno e do Estado brasileiro. A história recente demonstra que divergências políticas entre governantes raramente são suficientes, por si sós, para inviabilizar o diálogo e a cooperação entre países.

É verdade que há uma tendência, em diversos contextos, de governos de extrema direita adotarem políticas que fragilizam a proteção de interesses nacionais, frequentemente em benefício de potências estrangeiras. Isso pode trazer consequências negativas para suas próprias populações. Ainda assim, mesmo esse fator não autoriza conclusões apressadas sobre o impacto imediato dessas vitórias eleitorais nas relações com o Brasil. Um país pode manter relações estáveis, ou até vantajosas, com outro governado por um líder situado em espectro político distinto.

Exemplos fora da América do Sul reforçam esse argumento. Na França, Emmanuel Macron, um dirigente liberal de direita e amigo pessoal do presidente Lula, tem se mostrado um dos principais entraves ao avanço do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Em sentido oposto, Donald Trump, líder identificado com a extrema direita, foi responsável por firmar acordos relevantes com o Brasil durante seu mandato. Esses casos ilustram uma realidade frequentemente ignorada: na arena internacional, os interesses econômicos e estratégicos costumam ocupar o primeiro plano, enquanto a ideologia dos governantes permanece em segundo.

Pode parecer contraditório, mas não é incomum que países mantenham relações mais fluidas e pragmáticas com governos ideologicamente distantes do que com aliados políticos formais. Por isso, afirmar de maneira categórica que a vitória da extrema direita no Chile é ruim para o Brasil é, no mínimo, precipitado. Talvez seja uma má notícia para parcelas da sociedade chilena; para a política externa brasileira, contudo, os efeitos ainda dependerão da convergência ou não de interesses concretos.

Por fim, é importante lembrar que, em países onde as eleições são regulares e as instituições funcionam, a alternância entre direita, esquerda e até extrema direita não constitui, por si só, uma tragédia histórica. O cenário político é dinâmico, o pêndulo oscila, e isso faz parte do jogo democrático. Nas relações internacionais, há menos ideologia do que muitas vezes se imagina e muito mais cálculo de interesses. É esse dado, e não o rótulo ideológico do vencedor de uma eleição, que definirá se as relações entre países serão boas ou ruins.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.