Tarefa difícil
DIREITO DE SER UMA TIA FALHA
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Tenho um pouco de medo de como esse texto pode chegar a qualquer pessoa, principalmente às minhas amigas, mas, como elas me conhecem, entenderão, espero que sim. A gente entra numa fase da vida em que ou todo mundo está casando e tendo filhos, ou você está na parcela como eu: descasada e sem planos para ter filhos. E é sobre ter filhos que a coisa começa a ficar ruim.
Eu amo crianças, gosto de estar com elas, levo para andar de patins, para jogar bola, tomo conta na pracinha e faço o que qualquer uma das minhas amigas precisar. Talvez trocar fralda seja difícil, porque eu posso colar as abas de forma errada. O ponto é que todas sabem que, de tia mesmo, eu tenho o título. Não que eu não ame esses pirralhos que me cercam, mas, com todo o respeito, eu conheci a mãe de cada um deles antes de eles existirem, ou a maior parte delas, então é difícil aderir apenas ao título de tia e esquecer o outro: amiga.
Quando a gente se encontra, eu quero saber das fofocas, de como está o trabalho, se o prazo do edital deu certo, se aquele carinha é maneiro, se deu tempo de fazer a unha e se a promoção do shampoo que a gente quer experimentar ainda está valendo. Quero contar meus babados, quero rir e poder falar palavrão em voz alta. Quero tomar um chope e chamar elas para o pagode, para o samba e combinar o jantar na minha casa com o vinho que elas gostam.
Então, assim, existe uma linha tênue entre ser tia e ser amiga, porque, no fundo, dá para ser os dois. Eu sou os dois, mas talvez eu seja a tia da minha amiga e não exatamente a tia do filho dela. Sei que é confuso. Eu sou a tia que vai se preocupar se o braço da amiga já está saturado de carregar a criança; a tia que vai perguntar há quanto tempo ela não lava o cabelo; que vai dizer que já chega de inventar moda para o aniversário desse mini ser, porque ela precisa lembrar que depois vem o material escolar, em janeiro.
Eu serei aquela que, com toda certeza, vai frisar que deixar a criança com o pai não está errado e faz parte, porque, no fundo, ela faz setenta coisas ao mesmo tempo e nunca reclama. Vou lembrar que, assim como ela alimenta o pequeno, ela também precisa se alimentar; que, às vezes, vai precisar SIM encarar que a criança está manhosa e que precisa de limites, por mais que doa. Vou dizer também que é normal não querer ser mãe vinte e quatro horas por dia, e que isso não diminui o amor que ela sente pelo filho. Pelo contrário: isso mostra com clareza que, além de mãe, ela ainda é uma mulher, que tem uma vida que era dela e ainda pode ser.
E que, às vezes, juntar as cadeiras do lugar e deixar a criança dormir vai fazer com que ela tenha lembranças legais quando crescer, assim como nós, dos anos 90, também temos. Falarei mil coisas o tempo todo, sempre com o maior respeito e lembrando: “eu não sou mãe, mas…”.
Eu poderia relembrar cada vez que tentei ajudar minhas amigas com as crianças e fui um fracasso total, mas também fui a fonte de apoio quando elas precisaram cem por cento de mim. Talvez eu seja a tia que chega aos aniversários atrasada, ou que, às vezes, nem consiga ir, porque perdeu a hora, porque bebeu em excesso, porque estava trabalhando no evento ou por qualquer outro motivo. Talvez eu não lembre muito bem de que cor as crianças gostam, mas terei sempre um lápis de cor ou um desenho para fazer com elas. Talvez eu não esteja disposta a ser tia na maior parte do tempo, mas serei aquela que vai ensinar sobre respeito e amor a essas crianças.
Talvez eu não consiga convencer nenhuma delas a comer brócolis ou coisas do tipo, mas vou preparar as mamadeiras e ainda testar se estão quentes. Talvez eu não vá brincar o dia inteiro com nenhuma delas, mas à noite ficarei ao lado para fazer dormir enquanto minha amiga termina qualquer coisa que tenha de fazer.
Ser tia é uma tarefa difícil; esperam muito de você. Mas ser amiga é uma expectativa ainda maior, porque a gente tem de equilibrar pratinhos, os pratinhos da amizade junto com o crescimento de uma pessoa que também vai fazer parte da sua vida. E, na maior parte do tempo, espera-se que a amiga seja uma tia exemplar e que faça parte da vida desses pirralhos tão lindos.
Mas a verdade é que, no fundo, antes de ser tia, somos amigas: mulheres, irmandade, amor e respeito. Pouco se fala que, muitas vezes, há uma rede de apoio para as crianças, a quem possamos recorrer para ajudar em diversas coisas. Mas quem é a rede de apoio dessa mãe que, às vezes, só precisa ser a mulher que um dia ela já foi? Uma mulher que possa dizer: “estou exausta”, “estou puta com o fulano”, “estou cansada de fazer almoço”, “estou cansada de buscar na creche”, “estou querendo sair para dançar”, “queria ter um hobby legal”, “não acho justo o pai não ter hora para voltar”, “não aguento mais ser a primeira opção do meu filho, mesmo sabendo que serei”.
Então, sim, para mim ser tia é algo complexo, porque antes disso eu sou amiga. E, em qualquer oportunidade que eu puder, darei mais atenção às minhas amigas para saber o que passa na cabeça delas do que aos seus filhos. E, sim, isso também é um ato de amor. Porque, afinal, pessoas felizes criam pessoas felizes.
Assim, antes de mais nada, caminharei lado a lado com cada uma das minhas amigas para que estejam minimamente bem, felizes, seguras e confiantes de que estão fazendo um bom trabalho como mães, mesmo errando todo santo dia. Porque esse é o meu modo mais sincero de ser tia: a tia que leva a criança ao parquinho, mas leva a mãe para sentar no bar e perguntar: você tá bem? Precisa de quê?
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Thalita Delgado (@tha_delgado): Jornalista, publicitária e empresária, que também se expressa como crocheteira e escritora. Apaixonada por música, livros e pequenas sensibilidades do cotidiano, lançou em 2024 seu primeiro livro A vida se faz rindo e chorando pela Editora Autoria.