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Demência

Dois estranhos

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Ele e ela passeavam no parque, acompanhados das respectivas cuidadoras.

Andavam devagar, que uma queda para um idoso é um perigo. E se esforçavam para lembrar das coisas, mas quase nada vinha à mente – se é que se podia chamar assim aquele órgão destroçado pela demência. Seus rostos plácidos expressavam, desse modo, o nada ou o praticamente nada interior.

De repente, na curva de um jardim, ele e ela quase se esbarraram. Não houve choques, as cuidadoras trocaram uma imitação de sorriso profissional, ela e ela trocaram sorrisos polidos…

E, de repente, brilhou nos olhos dos dois um lampejo de surpresa e reconhecimento, porém logo passou. E houve a tentativa de pronunciar um nome do passado, um nome querido. Mas os nomes dele e dela não foram recordados, o tempo é uma pantera impiedosa, e a degeneração mental, mais ainda. Afastaram-se como os estranhos em que se haviam transformado, com o final do amor, com o passar do tempo, com a demência irreversível.

Enquanto caminhava para casa, com passos miúdos, ela pensou: “Que senhor distinto. Sua fisionomia me lembra alguém que amei, mas não lembro o nome, nos últimos tempos minha memória anda horrível!” E o rosto, que décadas antes ele havia coberto de beijos, logo perdeu sua expressividade momentânea e retomou a placidez vazia.

Ele, por sua vez, não chegou a pensar nem isso, que a demência, no seu caso, estava mais avançada. Mas empertigou-se, afastou o braço da cuidadora, empunhou com firmeza a bengala e tentou avançar sozinho, os passos firmes, como os de um moço enamorado que se dirige ao encontro da amada.

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