P4R
Dois velhinhos muito rabugentos
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Antônio e Zózimo eram amigos. Diziam, brincando que era uma amizade de A a Z (nos anos 1970, havia publicações intituladas Cozinha de A a Z e assim por diante). Passavam horas papeando, bebendo pesado, zoando um com o outro e, paixão mútua, jogando xadrez. Mas o mundo é redondo, gira o tempo todo, e o devir os afastou. Muitos milhares de voltas depois, reencontraram-se na casa de uma conhecida.
– Oi, Zózimo, que saudade, velho amigo! – depois disso, Antônio foi direto ao ponto. – Você ainda joga xadrez?
– Que nada, amigão. Não jogo há mais de 30 anos. Em minha última partida, levei uma surra homérica de meu neto de 14 anos.
– Coincidência, também apanhei de meu netinho. Apenas 12 anos, mas joga como um demônio!
Os dois conversaram por horas seguidas, adicionaram-se no zap e foram pra casa, que velhinhos dormem cedo. Uma semana depois, veio o post que ambos esperavam:
– Velho amigo, que tal jogarmos uma partida pelo whatsapp? Os dois estamos jogando mal, mas vai ser divertido.
– Aceito, Antônio, mas vai ter de esperar. Nem tenho mais tabuleiro nem peças…
– Eu também não. Mas a gente compra, deve ser baratinho…
Zózimo não teve coragem de dizer que estava mais duro que pau de noivo. E não desconfiou que Antônio ostentava uma ereção financeira similar. Seja como for, encomendaram tabuleiro e peças em uma loja de vendas online, e esperaram a entrega. Uma semana depois, um deles tomou a iniciativa:
(A partir desse ponto, omitirei os nomes dos personagens. Afinal, são bem similares, dois velhinhos rabugentos apaixonados por xadrez.)
– P4R.
– Ah ah, saída clássica, amigo? Igualo seu movimento, peão vai pra casa quatro do rei. P4R.
O chabu começou logo em seguida. Um deles queria mandar fotos do tabuleiro a cada jogada, o outro insistia em seguir a norma primordial do jogo do bicho, quer dizer, vale o escrito. Muito bate-boca online depois, aceitaram ambas as formas de notação, a tradicional, escrita, complementada por fotos, fotos a mancheias.
Só que o jogo não andava, as peças pareciam estar nas casas erradas, a conversa entre os dois amigos foi ficando mais ríspida. Lá pelas tantas, depois de examinar bem uma foto, um deles teclou, exasperado:
– Porra, cara, você colocou o rei preto na casa preta. Esqueceu da máxima Regina in colorem, a rainha na cor? Vamos ter de recomeçar essa bosta. Insisto no P4R. mas agora vê se joga direito, imbecil.
Silêncio ofendido do outro lado da linha. Afinal veio a resposta:
– P4R.
A amizade estava se desfazendo com rapidez. Um dos velhinhos foi urinar, próstata de idoso é uma desgraça. Ao voltar, leu uma cobrança nada polida:
– Joga, cachorro!
A coisa avançou aos trancos e barrancos, com movimentos impossíveis, entrega de peças por descuido, barbaridades assim. Foi então que um deles postou:
– D4BT.
O outro tripudiou.
– Quer dizer que houve uma revolução no reino do xadrez, guilhotinaram o pobre do rei e a torre assumiu o poder? E a rainha se bandeou para o traíra? Só existe dama vai pra casa 4 do bispo da torre na sua cabecinha doente. Para todos os enxadristas do mundo, menos Vossa Imbecilidade, só existe bispo do rei e bispo da dama. Bispo da torre é lance de um velho demente ou quase!
– Seu filho de uma égua, não jogo mais com você, grosseirão!
(Na verdade o digitado foi bem mais ofensivo, mas me empenho em manter meus textos em um bom nível, adequado à leitura das famílias.)
– Filho de uma égua é você, ex-amigo, enxadrista de bosta!
Fim de jogo por ofensas mútuas, causadas por SRI (Síndrome de Rabugice de Idoso). Mas o xadrez tem razões que a própria razão desconhece. Uma semana depois, um deles recebeu uma postagem sem qualquer saudação, sem um bom dia, boa tarde, boa noite, um simples Oi. Uma mensagem sucinta, curta e grossa:
– P4R.