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Hic sunt leones

Dorival despertou e notou que a rua estava quieta demais

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Dorival acordou às 9 horas plenamente descansado, depois de uma excelente noite de sono. Foi ao banheiro, tomou uma ducha rápida, começou a preparar um café, e então percebeu que as coisas estavam muito diferentes. A começar pelo silêncio que o envolvia: não chegava ruído algum da rua, sempre movimentada naquele horário; escutava apenas um distante gorjeio de passarinhos. “Mais silencioso do que um túmulo”, pensou. “Deve ter sido por isso que dormi tão bem”.

A segunda percepção de que tudo havia mudado veio quando abriu a janela do apartamento e respirou fundo, seu ritual cotidiano. O ar que chegou a seus pulmões era puro, intocado pela poluição, tão puro que o fez cambalear e quase desmaiar. Mas logo se recompôs e finalmente olhou pela janela, para a selva de pedra, como costumava dizer com uma pitada de ironia (adorava brincar com lugares-comuns).

Era a cidade que tão bem conhecia – mas, ao mesmo tempo, não era. Sua rua, e todas as que conseguia ver do seu 9º andar, estavam vazias, nem um só veículo a motor transitava por elas. Além disso, estavam pontilhadas de árvores – algumas enormes, outras um pouco menores, mas todas bem altas. E, nos galhos, viu o que lhe pareceu serem grandes ninhos.

Dorival não se assustou. Acreditava na existência de dimensões paralelas à terrena e achou perfeitamente possível ter sido levado, enquanto dormia, para uma metrópole mais em harmonia com a natureza, mais a serviço dos seres vivos e menos a serviço do aço e do concreto. Como e por quê, não fazia a menor ideia, mas isso não o preocupou. Dotado de espírito aventureiro, gostava de viajar, de encarar o desconhecido. Um de seus ídolos era Marco Polo, que divulgara, para a Europa medieval, as maravilhas que conhecera em suas andanças pelos domínios do soberano mongol Kublai Khan, em especial pela China.

Outra paixão sua eram os mapas antigos e medievais, do tipo que inscrevia, nas vastidões desconhecidas do interior da África, uma única legenda, “Hic sunt leones” (aqui tem leões). A lembrança desses mapas e dessa frase o fez decidir: estranho numa terra estranha, sairia de casa e iria investigar os leões que havia por aí.

Desceu de elevador – o ruído do motor foi o único som urbano naquele mundo arborizado e silencioso –, saiu do prédio e começou a caminhar. Ninguém à vista; caminhava com cuidado e bem quieto, afinal poderia mesmo haver leões ou coisa pior. Ouviu então sons que o fizeram pensar no pipilar de aves. Seguiu na direção dos sons e escondeu-se atrás de uma árvore.

O gorjeio vinha de duas aves com a aparência de pardais – mas enormes, quase da sua altura. Não vestiam roupas, com sua plumagem, não precisavam. Ele percebeu, surpreso, que conseguia entender telepaticamente o que diziam. “Que bom, assim poderei me comunicar com elas”, pensou. Mas a prudência é um atributo valioso para todo explorador, e Dorival decidiu ouvir mais um pouco, antes de anunciar sua presença.

– … e seus filhotes, já deixaram o ninho?

– Falta pouco, piam de dar pena, exigindo alimento. Quando penso na quantidade de carne abatida, no momento da conquista…

“Conquista?” Pela primeira vez, Dorival ficou apreensivo.

– Foi inevitável, não há como controlar o instinto de predador.

– Sei disso, mas os governantes poderiam ter previsto a orgia de sangue e estabelecido criadouros de minhocas.

Ao ouvir as palavras “orgia de sangue”, Dorival tremeu de medo.

– Nossos irmãos comedores de carniça ficaram no sétimo céu. Mas praticamente todas as minhocas foram exterminadas. E agora meus filhotes morrem de fome!

Mais que assustado, o humano decidiu procurar abrigo. Mas tropeçou em uma pedra, parte de seu corpo apareceu junto à árvore e foi visto pelas duas enormes pardocas.

– Uma minhoca! – gritaram ambas. – E voaram em sua direção.

Enquanto corria, Dorival lembrou do parentesco das aves com os dinossauros e, parafraseando o “Hic sunt leones”, murmurou em latim e grego “Hic sunt sauros, deinos sauros” (Aqui tem lagartos, lagartos terríveis). As caçadoras logo o alcançaram. Ele defendeu-se a pontapés, infligiu-lhes ferimentos, mas bicos afiados arrancaram-lhe grandes nacos de seus membros. Naquele dia, os filhotes teriam o que comer.

Pouco antes de desmaiar, o homem-minhoca viu-se coberto por uma enorme sombra, projetada por uma gigantesca ave de rapina, duas vezes maior que ele. O falcãozão emitiu um pensamento satisfeito, “Um carneiro! Vou levar o que sobrou da carcaça para meus filhotes!”, e cravou-lhe as garras no tronco, dilacerando-o. Em seguida, subiu com o cadáver para um dos mais altos ninhos, em uma das mais altas árvores.

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