Exorcismo e Esconjuro
Duas faces da mesma moeda
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Exorcismo
Ele escrevia poemas para exorcizar seus demônios.
Repelidos pelos versos, eles eram lançados ao ar e em seguida dispersos ao sabor do vento. Porque não eram diabos vindos das profundas do inferno, os pesos-pesados de malignidade; eram antes construtos do psiquismo do poeta, resquícios de pequenas maldades, de ressentimentos aparentemente esquecidos, de antigos rancores. Mais para diabretes, portanto, do que para demônios impiedosos.
Assim, levados pelo vento, dispersavam-se pela cidade. E, como acontecia com as criaturas, seu destino singularizava-se.
Alguns tinham a sorte de encontrar humanos apetitosos a quem obsedar. E se instalavam, posseiros de garras e dentes afiados, na mente e no coração dos infelizes, não raro recepcionados efusivamente por seus pares que já se encontravam ali.
Outros vagavam sem rumo, buscando em vão uma presa a quem assediar, no fundo ansiando pelo retorno ao corpo e ao espírito do poeta. Poucos conseguiam fazê-lo; a maioria se tornava pobres diabos sem vítimas, incapazes de se ancorar em algum vivente. Levavam, em tais condições, uma existência miserável, pior que a de qualquer círculo do inferno, condenados a um voejar incessante e sem sentido.
Alguns, resilientes e afortunados, conseguiam voltar a sua vítima. E descobriam, mortificados, que tinham de recomeçar do zero os tormentos, tocaiá-la por um bom tempo, rodeá-la em círculos cada vez mais próximos, para só então tocar o escritor com suas garras sujas, e depois, muito depois, cravá-las em seu psiquismo.
Diante de tanto trabalho, alguns desistiam. E desapareciam quase sem deixar vestígio, como um mau poema deletado, uma poça de água exposta ao sol inclemente ou uma semente que apodreceu antes de germinar.
Esconjuro
Ele escrevia para esconjurar seus fantasmas.
Repelidos pelo texto, eles eram lançados ao ar e em seguida dispersos ao sabor do vento. Porque fantasmas são leves, etéreos, diáfanos, e além disso poucos deles eram abantesmas de verdade, resquícios imateriais de gente falecida; a maioria era de projetos de que ele deliberadamente abrira mão, sonhos de que havia desistido, um amor que não vivera em sua plenitude, por medo do fracasso, devaneios que descartara, vendo-os como coisa de criança.
Assim, levados pelo vento, todos eles se dispersavam pela cidade. E, como acontecia com as criaturas, seu destino singularizava-se.
Os fantasmas “reais” logo encontravam viventes com quem se aninhar. Como tinham pouquíssima memória – exceto das circunstâncias de sua morte, lembradas em detalhe, e de lampejos fugidios de sua existência antes disso –, em pouco tempo esqueciam o escritor. E viviam “felizes” junto à nova vítima, se é que se pode agregar o termo felicidade à condição fantasmagórica e se é que se pode chamar de vítima ao indivíduo que tenha um encosto.
Já os fantasmas de sonhos, projetos e antigos amores vagavam sem rumo, ansiando pelo retorno ao corpo e ao espírito daquele que lhes dera um arremedo de existência. Por essa razão, mostravam-se incapazes de se ligar a outro ser vivo, a menos que este também houvesse desistido, por medo ou fastio, dos sonhos, projetos e antigos amores do escritor. Não os mesmos, claro, mas algo numa vibração idêntica. Isso acontecia raríssimas vezes; desse modo, a grande maioria se transformava em almas penadas. Provinham desses infelizes os uivos lastimosos atribuídos à totalidade dos abantesmas.
Mas alguns, afortunados, conseguiam voltar a seu criador. Então era uma alegria, aconchegavam-se junto a ele, acariciavam-no com suas mãos etéreas, cobriam-no de beijos e abraços ectoplásmicos. Tal influência carinhosa algumas vezes levava à retomada, com um vigor acrescido, dos antigos sonhos e projetos, à redescoberta de velhos amores. E esses fantasmas viam sua condição enfraquecer, sua existência ganhar um mínimo de concretude no que haviam impulsionado; e desapareciam felizes, de alguma forma perpetuados naquilo que haviam contribuído para dar andamento ou mesmo concretizar.