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Olhos D'Água

Duas vidas, um parque e o silêncio da jovem viúva

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Ana Maria Martínez

Vera, por um desses eventos fortuitos que acontecem quase com ninguém, teve a sorte de enviuvar justamente no primeiro dia de trabalho do então marido, Júlio, no Banco Central nos idos de 1985. Não que faltasse amor pelo esposo, mas tal imprevisto acabou por lhe render uma polpuda pensão vitalícia. Sem filhos, a jovem viúva, no auge dos seus 27, teve dinheiro de sobra para comprar vários vestidos e viveu o luto por um ano inteirinho.

Ela, que havia se mudado para Brasília por conta do marido, acabou ficando por ali. Sentia falta da família, é verdade, mas fincou os pés naquela terra vermelha e nunca mais quis voltar para Belo Horizonte. Ademais, o apartamento, mesmo que pequeno, já estava montado e, melhor, ela gostou daquele silêncio.

Conforto, economia e uma renda muito acima do razoável foram mais que suficientes para aplacar aquele sentimento de querer ir embora, que, vez ou outra, a instigava. Foi ficando, ficando, ficando, até que a capital se tornou seu lar. É verdade que as promessas de largar tudo aquilo e se mandar para uma cidade praiana ainda são ditas para os mais próximos. Seja como for, Vera está tão incrustada em Brasília, que ninguém mais acredita nas suas palavras. Além do mais, hoje, prestes a completar 63, talvez até ela própria já tenha perdido o ânimo de abandonar a cidade projetada por Lúcio Costa.

Ângelo, a despeito de ter morado longe de Brasília por quase quatro décadas, retornou para a sua terra natal. Viajou o mundo por conta do trabalho, mas, encardido desde as primeiras horas de vida pelo vermelho daquele chão, não teve dúvida de que seu lugar era ali. Aposentado e viúvo, voltou no final de 2021, quando os 70 anos já lhe batiam à porta.

Não ficou rico, mas estava longe de ter que fazer economias para chegar ao fim do mês para manter a geladeira cheia. Além disso, era um homem prático. Tão prático, que preferiu comprar um pequeno apartamento. Nada mais que dois quartos: um para ele, outro para possíveis visitas, que, na verdade, eram raríssimas. Por isso, tal cômodo se tornou uma espécie de escritório ou, como Cida, a faxineira, dizia, o quarto da bagunça.

O velho, mesmo que acessível, teve certa dificuldade de fazer amizade. Ficou sócio de um clube, mas logo percebeu que horas ao sol só lhe trouxeram uma pele mais bronzeada, o que até lhe destacavam os olhos claros. Mas desistiu daquilo, continuou sem amigos. Ainda mais porque muito sol poderia lhe causar um câncer de pele. Acostumou-se com aquela vida silenciosa.

Vera e Ângelo, apesar de morarem na mesma quadra, no mesmo prédio, ela um andar acima, nunca haviam se notado. Provavelmente por conta dos horários distintos ou, talvez, pela miopia. Seja como for, os dois passaram a fazer caminhadas por recomendação médica. Aliás, a mesma geriatra, que ainda não havia chegado aos 40.

Os dois, a princípio, não gostaram daquela atividade física, mas logo descobriram o prazer de andar ali pertinho, no aprazível parque Olhos D’Água, uma belezura de lugar. Aquelas paisagens, na verdade, tornavam as caminhadas tão prazerosas, que os dois, não raro, davam duas, três voltas, sem se darem conta, tamanho o grau de relaxamento.

Invariavelmente, Vera e Ângelo faziam uma pausa na Lagoa do Sapo, onde degustavam toda aquela mansidão. Uma flor com seu colorido aqui, aquela borboleta de asas graúdas ali, a tartaruga esquiva entre a folhagem aquática. É possível que aqueles dois captassem tudo, a despeito dos sentidos já envelhecidos. Gastos sim, mas com certeza mais experientes para apreciar as maravilhas ao redor.

Interessante era que, apesar de tantas idas e vindas, jamais haviam se reparado. No entanto, naquele dia, lá estava aquela mulher diante da Lagoa do Sapo, quando Ângelo se aproximou. Ele nem a percebeu, pois seus olhos míopes miravam aquela água mansa à sua frente.

Os velhos se encontravam a não mais de dois metros um do outro. Ela foi a primeira a perceber a presença de alguém, mas não teve ânimo de olhar para o lado, mesmo porque estava entretida com os peixes no fundo da lagoa. Ângelo, apesar de distraído, foi despertado pelo perfume exalado pela pele da mulher. Tímido, porém, manteve a vista numa enorme árvore, mas seu pensamento já era outro.

Curiosos, finalmente se olharam. Vera, mais corajosa, sorriu e, então, se pronunciou: “Bonita lagoa”. Ângelo concordou com um leve movimento de cabeça. Por um instante, abstraíram-se daquele lugar, até que o canto de um joão-de-barro os transportou de volta para seus próprios devaneios. Silêncio total.

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