Curta nossa página


Na esquina...

DUENDES ASSASSINOS

Publicado

Autor/Imagem:
Gilberto Motta - Texto e Foto

“Agora não pergunto mais aonde vai a estrada. Agora não espero mais aquela madrugada. Vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada. O brilho de paixão e fé, paixão, faca amolada”

(“Fé cega, Faca Amolada”, Milton Nascimento/Beto Guedes)

O cara parou na esquina e acendeu o cigarro.

Com as mãos trêmulas, retirou da carteira o pedaço de papel confirmando o endereço.

“Não pode ser outro lugar… Esquina da Tavares com a Ipiranga, em frente a casa rosada com duendes no jardim” -, falou sem sons naquele discurso interno de quem sabe que está por um fio. Depois se acalmou. Escondeu-se embaixo da marquise até a chuva passar.

Oito da manhã passou o carro da limpeza.

Com água no corpo o cara acordou e foi pra briga:

“Qualé, mané?! Não tá me vendo aqui, caralho!”.

Os manés da limpeza ignoraram e seguiram em frente.

Pau da cara, o cara buscou o mercadinho da outra esquina. Entrou, comprou dois pães, uma coca-cola e veio outra surpresa.

No caixa, a moça parecia não enxergá-lo.

“Cobra aí, garota! Tô todo molhado e fodido”.

A moça pediu para a fila andar. O cara passou e seguiu pela rua.

Teimoso como sempre fora, voltou àquela esquina da madrugada anterior: Tavares com Ipiranga.

A casa rosada estava lá. E com os duendes no jardim.

Desde moleque, o cara acreditava em duendes.

Sonhava com eles. Vivia o ano inteiro para, no Halloween, fazer a fantasia de duende. Não um duende qualquer. Era o duende assassino, um serial killer. Um homem-anão que matava com requintes de cirurgião usando apenas uma faca amolada.

“Deixar a sua luz brilha e ser muito tranquilo. Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo. Brilhar, brilhar, acontecer, faca amolada. Irmão, irmã, irmão de fé, faca amolada.”

Naquela manhã o menino-cara chegou na escola antes de toda a turma. Tudo para esperar Mariana.

Ela sempre chegara meia hora antes do fechar do portão.

O carro do pai parou. Mariana desceu e entrou no colégio. E nem viu o cara. No portão, pela primeira vez, ele percebeu a sua transparência. Anos depois, o cara confidenciou a um amigo:

“Velho, me senti um bosta. Era como se eu não existisse. Ela passou pelo portão e nem me viu. Pode?”.

O cara seguiu pela vida transparente.

Arrumou um trabalho de mecânico na oficina do Jorge Martelinho de Ouro e aprendeu o ofício. Casou, teve dois filhos, mas a menina Mariana jamais saiu de seus sonhos de adolescente.

Tempos depois…

Chegou à cidade uma nova igreja. Neopentecostal: “Os Últimos Dias de Davi”.

O pastor era o pai de Mariana. O cara logo foi ao culto.

Virou evangélico de carteirinha.

Mariana cantava no coro e ele na primeira fila. Mariana jamais o notara. E assim a vida seguiu.

E veio o Dia do Hallowen. O cara entrou na igreja vestido de “duende assassino” e esfaqueou quatro pessoas no palco do culto.

Gritava, gritava muito. O pai pastor protegeu Mariana.

Restou ao cara bater em retirada.

No bolso, o bilhete com o endereço da família de Mariana: Tavares esquina com a Ipiranga, casa rosada com duendes no jardim.

Naquela madrugada…

O cara pulou a grade do portão e deitou-se ao lado das estátuas de duende no jardim. Cortou os pulsos, morreu ali. Queria ser para sempre um duende de pedra no jardim da casa da moça. E assim foi.

Petrificou.

………………………………

Gilberto Motta é escritor, jornalista e professor/pesquisador e que, já sexagenário, ainda morre de medo de duendes e bonecos assassinos. Vive na Guarda do Embaú, pequena comunidade de pescadores no litoral Sul de SC.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.