O cabuloso
Ele namorava Jandira, uma moça linda
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Certos textos têm uma história bizarra. Escrevi um conto, Sandrinha – já publicado pelo Notibras – em que a protagonista é estuprada aos 13-14 anos, engravida, casa com o violador e certa noite o degola. Um amigo meu comentou ter ficado surpreso, “pensava que o corte seria entre as pernas do cabuloso”. Percebi que há anos eu não ouvia ou lia essa palavra, e quem não for mineiro, provavelmente também não. Para suprir essa lacuna, aí vai.
O cabuloso
– Joãozinho e um garoto cabuloso.
A frase foi do avô dele (e meu, que o fiodeumaégua era meu primo). Vô Pedro era um velho fechado, de poucos sorrisos, que sempre usava palavras difíceis. Fiquei sem graça de confessar minha ignorância e perguntar o que era cabuloso, sabia apenas que o time do Cruzeiro é chamado por esse apelido, então consultei um pesado dicionário no escritório de meu pai.
Cabuloso adjetivo
Que traz consigo o azar, má sorte; azarento. [Regionalismo: Rio de Janeiro] Muito bom; impressionante, sensacional. Que provoca medo; que causa pavor: foi um acidente cabuloso. Que contém complicação ou confusão; complicado: texto cabuloso. Que demonstra antipatia; antipático. Que provoca aborrecimento; maçante.
Comparei os elementos do universo da cabulosidade com o que conhecia sobre o coisa-ruim, quer dizer, sobre o meu priminho querido. Azar? Difícil afirmar, categoricamente, que um menino de 11 anos vai ter má sorte pelo resto da vida. Um cara sensacional? Nem mesmo os pais de Joãozinho, que tinham obrigação de cuidar dele e talvez o amassem (tem gosto pra tudo), ousariam dizer que era um menino muito bom, de desempenho impressionante. Alguém apavorante? Não aos 11 anos, cedo demais para arriscar essa previsão. Idem para complicado. Em contrapartida, ele correspondia aos dois últimos atributos da lista: era antipático (os primos pelo menos achavam que era) e, em especial, maçante. Joãozinho era chato pra dedéu. Chato de marré, marré, marré, chato de marré de si.
Os anos passaram, fomos nos afastando (primos fazem parte do pacote familiar, amigos a gente escolhe), e o pouco que ouvia falar dele confirmava sua chatice e antipatia. Com uma agravante, aos 22 anos Joãozinho estava enredado em uma relação complicada, cabulosa. Ele namorava Jandira, uma moça linda, estava apaixonado, queria casar – e, todos diziam, ela dava mais que chuchu na cerca. Não sei se era verdade, talvez transar com homens normais fosse o lastro, a condição necessária para conseguir fazer coisinhas eróticas com aquele poço de tédio. Eu a conhecia ligeiramente (juro, jamais ficara com ela), a considerava bonita, extrovertida, alegre, e via com tristeza que ela parecia murchar na presença de meu primo e de seu ciúme.
Casaram-se, viveram numa feliz mediocridade por dois anos, e então Joãozinho, talvez informado dos chifres cabulosos, impressionantes, que os boatos lhe atribuíam, deu-lhe uma surra brutal e depois a assassinou com dois tiros de revólver. Foi preso, julgado e condenado a 30 anos de cadeia. Com isso, concretizaram-se os últimos elementos da definição, o cabuloso como alguém que provoca medo, causa pavor, e traz consigo a má sorte para si e para os outros; essa qualidade do coisa-ruim evidenciou-se numa escala ampla, geral e irrestrita. Quando a Vô Pedro, personagem austero, de palavras difíceis, havia falecido três anos antes, sem ver confirmada a sua análise.