Mutações sob o olhar do poeta
Entram em cena argúcia, obstinação, sensibilidade e sabedoria de um ancião
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“Uma mudança de tempo é suficiente para recriar o mundo e a nós mesmos.” Marcel Proust, O caminho de Guermantes, volume 3 de Em busca do tempo perdido.
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Chegou o tempo das folhas caídas e, com ele, o Caçador. Reuniu os homens e rapazes da aldeia e os conduziu na busca de animais de porte, que pudessem alimentar por muito tempo o grupo. Dois dias depois, quando regressaram, exaustos, mas triunfantes, o Caçador transmutou-se no Ancião. Este reuniu a gente da aldeia e contou pela enésima vez os mitos da comunidade. Era um meio de cimentar a identidade grupal e o respeito às tradições.
O mito primordial era, claro, o das Mutações (o Ancião utilizou outro termo, que não interessa aqui). Era uma brincadeira dos espíritos, insistiu, mas ao mesmo tempo uma valiosa dádiva. Graças às mudanças de forma, todos podiam experimentar a vida dos companheiros, conhecer um pouco do que faziam, do que os levava a agir de determinado modo e não de outro. Os adultos sorriam, disfarçando o tédio, já tinham ouvido aquela explicação vezes sem conta; mas as crianças escutavam, fascinadas.
O Ancião despediu-se. Estava na hora de convocar o Xamã, para que viajasse ao mundo dos espíritos e lhes suplicasse pela continuidade das Mutações. O que foi feito, e a vida seguiu. A cada mudança nas estações, por vezes depois de cada tempestade, a paisagem se transformava, e também os habitantes da aldeia.
Mas, de geração em geração, os Condutores – o Caçador, o Ancião, o Xamã e também o Guerreiro, que só aparecia em uma emergência, quando era necessário defender a aldeia – ficavam mais preocupados. Os espíritos pareciam entediados, cansados da brincadeira das Mutações, ou o mundo estava envelhecendo, suas engrenagens emperrando, e a transformações não mais ocorriam com todos. O resultado é que alguns se imobilizavam em sua identidade, no que faziam, na companhia da mulher e dos filhos, em um empobrecimento que lhes passava desapercebido.
Por sorte, havia as crianças. Mudavam o tempo todo, sem esperar pela sucessão de estações, seus grandes olhos arregalados diante de tantas possibilidades de ser. Por vezes, depois de uma mutação, simulando susto, perguntavam ao pai quem eram eles, diziam que não eram dali e sim de uma aldeia distante; estes, ocultando um sorriso, insistiam que sim, elas pertenciam à aldeia, mas eram livres para regressar à outra comunidade, assim como os adultos haviam respondido às crianças desde tempos imemoriais, pois a brincadeira de “estranho em uma terra estranha” era mais que uma tradição, era um rito de passagem do fim da infância naquele mundinho.
E chegou um tempo em que, aparentemente, só as crianças se transformavam. Além disso, os Condutores foram desaparecendo – primeiro o Xamã, depois o Caçador e por último o Ancião, depositário dos mitos.
Cada pessoa se ensimesmou, encapsulada em sua própria identidade, e a vida ficou mais pobre.
Coube a condutores de novo tipo – os escritores – apontar que sim, as transformações continuavam, o mundo e cada um se recriavam continuamente. Mas eram mutações mais sutis, que passavam desapercebidas a muitos, até aos olhos dos próprios atingidos, sendo necessário, para identificá-las, a argúcia de um caçador, a obstinação de um guerreiro, a sensibilidade de um xamã, a sabedoria de um ancião, o olhar de um poeta.