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O LADO B DA LITERATURA

ENTRE A SAUDADE E O PODER, UM HOMEM QUE TEMIA O ESQUECIMENTO

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Autor/Imagem:
Cassiano Condé - Foto de Arquivo

Folheio ao acaso a coletânea de crônicas As Florestas e, mais de uma vez, esbarro na mesma sombra: a inquietação do poeta diante da memória. Quem se lembrará de mim quando eu não estiver? É um temor quase infantil, mas também é um dos mais humanos e, em Schmidt, soa como presságio. Há nele essa mania de despedida, como se a vida inteira fosse uma carta escrita às pressas para o futuro, uma tentativa de permanecer.

Nasceu no Rio de Janeiro, em 18 de abril de 1906, e cedo a existência lhe ensinou que o mundo é transitório. Na infância, morou na Suíça, enquanto os pais se perdiam em tratamentos contra a tuberculose; morto o pai, a família regressou ao Brasil e a estabilidade virou miragem. A vida foi modesta: Boca do Mato, no subúrbio carioca do Méier, internato do Granbery em Juiz de Fora, e, por fim, Copacabana, onde se fixou com a mãe e os avós e residiu pelo resto da vida. Antes do mito, veio o homem prático: caixeiro em loja de tecidos, gerente de serraria em Nova Iguaçu. E já ali, nesse começo sem glamour, aparece o primeiro sinal do seu “lado B”: Schmidt sempre teve um talento evidente para os negócios, um faro de comerciante convivendo, sem cerimônia, com a dor de poeta.

Hoje o classificam como poeta da segunda geração do Modernismo, embora ele não pareça ter pertencido, à época, a grupo algum: era um satélite, com órbita própria, mais íntimo do que gregário. Mas a sua vida não coube no verso. Fez política — boa política, dizem — e foi muito próximo de Juscelino Kubitschek durante e depois do governo. Como redator de discursos presidenciais, atribui-se a ele a criação do lema “50 anos em 5”. Foi embaixador do Brasil junto à comunidade europeia, ajudou a imaginar a Operação Panamericana, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico da América Latina. Também mergulhou no mundo empresarial e financeiro: presidiu conselho de indústria química, trouxe ao Brasil o conceito de supermercado de autosserviço que conheceu nos Estados Unidos, e fundou os supermercados Disco no então Estado da Guanabara. A figura que se desenha é curiosa: um homem que escreve sobre solidão e finitude, mas sabe lidar com cifras, estruturas e máquinas; um poeta que fala de ausências, mas que se põe bem no centro do país que queria moldar.

Como cronista, espalhou por jornais e revistas a mesma matéria íntima de sua lira: o amor que já passou, as pessoas que não voltam, a morte, a solidão, a sensação de que a vida escorre. Manuel Bandeira, seu amigo de longa data, via nos poemas de Schmidt um tom bíblico, profético e, ao mesmo tempo, fazia a observação maliciosa e afetiva de que ele jamais tivera a virtude de construir um soneto dentro da métrica. O que Bandeira parecia captar, no fundo, era essa natureza de Schmidt: grandioso e desajeitado, solene e imperfeito, imenso no sopro e irregular na carpintaria.

E havia nele um Schmidt de cena, quase cinematográfico, que os amigos guardaram como lembrança: num verão dos anos 20, Bandeira aconselhando o poeta, suarento, enfiado num terno modesto e colarinho aberto, a fazer regime para emagrecer e, assim, ter o sucesso com mulheres que invejava nos amigos. Paulo Mendes Campos descreve a primeira vez em que o viu: depois de longa amizade epistolar, o jovem mineiro telefonou a Schmidt de um bar, no Rio, e o poeta chegou num automóvel fabuloso, de terno azul, com um cravo vermelho na lapela. Pediu ao garçom um sorvete complicado e discursou meia hora sobre futebol, como se o mundo se resolvesse ali, entre uma colherada e outra. Em 1945, quando Pablo Neruda visitava o Brasil, a roda da noite carioca incluiu Schmidt; no fim, ele levou todos ao apartamento na rua Almirante Gonçalves, esquina com Atlântica, em Copacabana, e abriu a adega com a generosidade de quem sabe que a vida é breve. Campos se recorda de uma cena pequena, que talvez explique muitas coisas: Schmidt comendo uma tangerina e perguntando a Neruda, que bebia um vinho francês, se no mundo de amanhã seria dado a todos beber um vinho como aquele. O chileno respondeu com voz firme: si, ciertamente. É difícil não ler essa cena como símbolo e também como autoacusação. O poeta, ali, parece medir a distância entre o ideal e o privilégio, entre o sonho de justiça e o fato de estar, naquele instante, do lado confortável do mundo.

Ele chegou a ter uma editora com seu nome e lançou obras decisivas, como Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Caminho para a distância, de Vinicius de Moraes, e Caetés, de Graciliano Ramos. Ao ser apresentado a Vinicius, desconfiou do garoto — “mas é uma criança…” — e Vinicius se ofendeu, como se o poeta tivesse negado não um livro, mas um destino. No entanto, ali também nasceu uma amizade duradoura. No fim dos anos 70, Vinicius diria, conversando com certo jornalista: “poeta mesmo foi o Schmidt.” Esse testemunho, vindo de quem vinha, é quase um selo: Schmidt era reconhecido, amado e, à sua maneira, venerado.

O mesmo jornalista menciona uma história que permite ver como Schmidt era dado a contradições. Certa feita, o poeta convidou-o à cidade serrana fluminense de Teresópolis, onde havia um jogo de bacará. Depois de jogarem a tarde toda, Schmidt disse que queria passar na casa de um parente, residente naquela cidade, que estava gravemente enfermo. Ao sair da casa do parente, Schmidt chorou, desconsolado, no ombro do amigo. Ao chegar no carro, entretanto, mandou que o motorista ligasse o rádio, no qual estava tocando uma música então em voga no carnaval, a marchinha “Nós, os Carecas”. Schmidt riu. Absorveu rapidamente os versos da música e ficou o resto da viagem cantando e divertindo-se.

Mas o “lado B” se insinua de novo quando a biografia encosta no íntimo. Schmidt amou várias mulheres, casou-se com Yedda Lemos, sobrinha de Jayme Ovalle, em 1936, e em alguns poemas deixa escapar a dor de não ter tido filhos: o berço vazio, os traços que ninguém herdou. Há uma crônica em que ele espia, do apartamento, a janela vizinha: um filho se preparando para dormir, abraçando o pai. Schmidt conclui que aquele homem era o mais rico dentre todos, porque recebia o afeto do filho. E, no entanto, durante o inventário de Dona Yedda, surgiu contra o espólio uma reivindicação de paternidade por parte da filha de uma ex-empregada de importante jornalista e colunista social carioca. Talvez o poeta tenha deixado herança, não pela via que desejou, mas pela via tortuosa da vida, que às vezes concede aquilo que negou, porém tarde demais, e com o sabor amargo de uma história que não se viveu. O assunto, ao que consta, vem sendo tratado pelos tribunais. O homem que temeu o esquecimento talvez tenha sido lembrado justamente por um fio de sangue que não pôde abraçar.

E então há o detalhe mais estranho e mais belo, porque toda vida grande tem suas pequenas excentricidades simbólicas: Schmidt, sempre gordo, sempre de óculos, por muitos anos teve um galo de estimação. Um galo branco, enorme, hierático, misterioso, a espreitar no escuro, enquanto, antes da alba, o homem de negócios misturado ao escritor já perambulava pelo apartamento, pronto a escrever e a pensar o Brasil que queria ver independente e desenvolvido. O galo parece uma criatura saída de seus próprios versos: uma vigília doméstica, uma sentinela do tempo, um oráculo sem fala. Morreu de enfarto, triste com a situação do país, num abafado 8 de fevereiro de 1965, e foi sepultado no São João Batista. Pouco depois, o governo da Guanabara lhe rendeu homenagens públicas: o viaduto próximo ao Corte do Cantagalo, entre Lagoa e Copacapana, e uma escola municipal no Engenho de Dentro, na rua Mapurari. A cidade, que costuma esquecer, ofereceu-lhe placas, como se placas fossem antídoto contra o oblívio.

Hoje a literatura sobre Augusto Frederico Schmidt é escassa. O mercado editorial brasileiro parece dever uma reedição decente de suas obras poéticas, negociável com a Fundação Yedda e Augusto Frederico Schmidt, detentora dos direitos, reunidas pela última vez em volume único em 1996, pela TopBooks e Faculdade da Cidade, com textos laudatórios de Antônio Carlos Magalhães e Roberto Marinho, amigos do poeta. Houve também um retorno do nome à mídia quando a Rede Globo lançou a minissérie JK, em 2006, e Schmidt foi belamente interpretado por Antônio Calloni. A vida do poeta, por si só, daria um filme. E o jornalista Waldir Ribeiro do Val, secretário e revisor do poeta por alguns anos, publicou em 2020 a excelente Vida e Poesia de Augusto Frederico Schmidt — um gesto de reparação tardia, mas necessário.

É aqui, porém, que o meu texto muda de temperatura. Porque existe o Schmidt que se admira sem perguntas, e existe o Schmidt que, quanto mais se admira, mais se interroga. Estamos em 2025, e a preocupação do poeta de ser esquecido felizmente não se concretizou: ele continua vivo nos leitores que levam adiante versos como estes: “se os meus lábios de morto se abrissem/permitindo que a minha voz de morto despertasse/que as minhas mãos de morto retomassem a força perdida…” Um poema que parece escrito já do outro lado, como se o corpo fosse um casulo e a voz, uma coisa teimosa, recusando-se a morrer. Eu o leio e sinto o peso do que não se apaga.

E é justamente por admirá-lo, como homem que amava o Brasil e como poeta, que tento perdoar suas falhas. Cheio de contradições e defeitos, como todos nós. Quem está isento de erros quando a vida oferece suas encruzilhadas tentadoras e ilusórias? Talvez tudo o que ele fez, do balcão ao palanque, do poema ao memorando, fosse a tentativa de realizar um sonho íntimo, um ideal. Resta a pergunta incômoda: foi mais para si mesmo ou para os outros?

Como empresário e homem rico, Schmidt apoiou os ventos golpistas que culminaram no fatídico 1964. Não me recordo de vê-lo derramar elogios saudosos à democracia, nem erguer a voz com fúria contra as ameaças que ela sofreria. Ele ainda estava vivo e atento quando, em junho de 1964, os direitos políticos do senador Juscelino, seu íntimo amigo, foram cassados, e JK embarcou para a Europa ainda esperançoso de que a tirania não durasse e que voltaria candidato em 1965. É difícil julgar homens desaparecidos sob lentes contemporâneas, sabendo os rumos que a história tomou. Os positivistas que depuseram o imperador poderiam prever Deodoro fraco e Floriano tirânico? O revolucionário de 1930 imaginaria o Estado Novo? Schmidt, em seu íntimo, temia sinceramente pelo Brasil diante das articulações militares que sacudiam o fim do governo Goulart? Essas respostas hoje pertencem aos historiadores, aos cientistas políticos, aos estudiosos. Poucas testemunhas restam.

Ainda assim, a dúvida me assalta, e me assalta não por ódio, mas por decepção. Decepção é um tipo de amor exigente. Poeta, eu te digo: foste grande, inquestionavelmente. Mesmo como político sem mandato, foste importante e nos colocaste no debate entre os grandes. Mas, como democrata, creio que falhaste naquela ocasião. E digo isso sem te cancelar, sem te reduzir, sem te empobrecer, porque a grandeza verdadeira não precisa de santo, precisa de humano.

Isso não macula tua poesia, asseguro. E, pensando bem, não deveria macular nem tua imagem pessoal, tantos anos faz que repousas no jazigo 39 da quadra 1.929 do São João Batista. Bem pertinho do Cazuza. Mas tu pertenceste à história, e quem pertence à história fica sujeito ao julgamento universal dos pósteros. Hás de te conformar, na Glória Eterna, se alguém te lê atravessadamente ao saber da tua proximidade com o marechal-presidente vindo do Ceará, com quem tinhas conversas cordiais e conferências longas. Há sempre um preço quando se frequenta o poder: o preço de ser lembrado também pelos corredores, não apenas pelos versos.

E, no entanto, conhecendo teus erros, eu ainda recito aos meus companheiros os teus poemas, como quem acende um fósforo em noite úmida. Porque há uma parte de ti que não cabe em julgamento nenhum: aquela que escreve como quem pressente o fim e, ainda assim, insiste no apelo à vida.

“Chegará o dia do último poema
E o último poema sairá para o tempo tranquilo e natural
Sem nenhuma melancolia, como se fosse o primeiro nascido
Do espírito inquieto.”

Esse é o teu lado A, e é eterno. O lado B, porém, é o disco inteiro tocando junto: a saudade e a engrenagem, o profeta e o empresário, o homem que pediu um mundo para todos e o homem que bebeu o vinho raro, o cronista da ausência e o operador da presença. Talvez seja por isso que tu temias tanto o esquecimento: porque sabias que ser lembrado não é apenas permanecer. É ser lembrado por inteiro.

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Cassiano Condé, 82, gaúcho, deixou de teclar reportagens nas redações por onde passou. Agora finca os pés nas areias da Praia do Cassino, em Rio Grande, onde extrai pérolas que se transformam em crônicas.

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