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Pomba Gira

Entre mito, preconceito e a ancestralidade feminina

Publicado

Autor/Imagem:
Magda Vasconcellos, Especial para Notibras - Foto Editoria de Artes/IA

Pomba Gira é uma das entidades mais conhecidas — e também mais incompreendidas — das religiões afro-brasileiras, especialmente na Umbanda e em vertentes da Quimbanda. Ao longo do tempo, sua imagem foi cercada por estigmas, associações equivocadas e leituras moralistas que pouco dialogam com sua verdadeira dimensão simbólica, espiritual e histórica.

Este artigo busca esclarecer o que é Pomba Gira, sua origem, seus significados e o papel que ocupa dentro das tradições afrodescendentes no Brasil.

Pomba Gira é uma entidade espiritual que integra a chamada linha da esquerda na Umbanda. A expressão “esquerda” não carrega, no contexto religioso afro-brasileiro, o sentido de maldade ou perversidade, como foi difundido por leituras cristianizadas. Trata-se, antes, de um campo simbólico ligado às encruzilhadas, aos limites, às escolhas difíceis, às paixões humanas e às contradições da vida.

Enquanto os Exus masculinos costumam atuar na abertura de caminhos e na comunicação entre os mundos, as Pomba Giras representam uma força feminina intensa, ligada à autonomia, à sexualidade, à justiça emocional e à quebra de opressões sociais.

Quem é Pomba Gira?
Pomba Gira não é uma única entidade, mas uma categoria espiritual que reúne diversas falanges e manifestações, como:

Pomba Gira Maria Padilha
Pomba Gira Maria Mulambo
Pomba Gira Rainha das Sete Encruzilhadas
Pomba Gira Cigana
Pomba Gira das Almas

Cada uma dessas manifestações possui características próprias, histórias simbólicas e campos específicos de atuação espiritual.

De modo geral, Pomba Gira é associada à figura da mulher marginalizada pela sociedade: aquela que foi silenciada, julgada, violentada ou excluída por desafiar normas patriarcais. No plano espiritual, essa experiência de dor se transforma em força, consciência e poder.

Um dos aspectos mais polêmicos da Pomba Gira é sua relação com a sexualidade. Diferentemente da moral cristã repressiva, as religiões afrodescendentes tratam o corpo e o desejo como dimensões naturais da existência humana.

Pomba Gira não simboliza promiscuidade, mas autonomia sobre o próprio corpo, liberdade de escolha e afirmação do prazer como parte da vida. Sua imagem — muitas vezes representada com roupas vermelhas, joias, risadas altas e postura firme — é uma afronta direta aos modelos tradicionais de submissão feminina.

Por isso, tornou-se alvo frequente de demonização, sobretudo por setores religiosos que associam qualquer expressão de sexualidade feminina ao pecado.

A encruzilhada é um símbolo central no culto a Pomba Gira. Ela representa o lugar das decisões, dos encontros e desencontros, do cruzamento entre caminhos visíveis e invisíveis.

No plano simbólico, a encruzilhada é o espaço onde não há respostas simples. É ali que Pomba Gira atua: ajudando seus consulentes a enxergar verdades incômodas, enfrentar relações abusivas, romper ciclos de humilhação e assumir responsabilidades sobre suas escolhas.

Preconceito religioso
A demonização da Pomba Gira está profundamente ligada ao racismo religioso que marca a história do Brasil. Durante séculos, práticas de matriz africana foram perseguidas, criminalizadas e associadas ao mal, enquanto símbolos cristãos eram impostos como universais.

Nesse processo, Pomba Gira foi reduzida a caricaturas: “entidade do mal”, “demônio feminino” ou “espírito obsessivo”. Tais leituras ignoram completamente sua função ética e espiritual dentro dos terreiros.

Na vivência religiosa afro-brasileira, nenhuma entidade trabalha para o mal. O que existe é a responsabilização dos atos humanos e a compreensão de que toda escolha gera consequências.

Hoje, Pomba Gira ocupa um lugar central no debate sobre gênero, identidade e resistência cultural. Para muitas mulheres — e também para homens e pessoas LGBTQIA+ — ela representa acolhimento, força e reconstrução da autoestima.

Nos terreiros, é comum que Pomba Gira atue em questões como:

Relacionamentos afetivos
Violência emocional
Autoestima e autonomia
Justiça simbólica
Libertação de vínculos opressores

Mais do que uma entidade espiritual, Pomba Gira tornou-se um símbolo de resistência contra séculos de silenciamento feminino.

Pomba Gira é ancestralidade viva, memória coletiva e força espiritual. Ela não pede submissão, mas consciência; não oferece atalhos fáceis, mas clareza; não reforça moralismos, mas confronta hipocrisias.

Compreender Pomba Gira é, antes de tudo, um exercício de respeito às religiões afrodescendentes e às múltiplas formas de espiritualidade que ajudaram a formar a identidade cultural brasileira.

Ignorá-la ou demonizá-la é repetir velhos preconceitos. Conhecê-la é abrir caminhos para uma leitura mais justa, plural e profunda da fé e da história do Brasil.

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