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Mãe e filha

Entre o vestido e o sorvete

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

A campainha não parava. Solange, imaginando se tratar das crianças da rua aprontando alguma, sorriu. Ah, moleques! Que época boa. Se soubessem… Mas não! Era Roberta, a filha do meio.

— Mãe! Mãe! Mãããããeeeee!!!

Assim que abriu a porta, a mulher foi questionada.

— Pô, mãe! Tá surda?

— Pensei que fossem os meninos.

— Meninos? Que meninos, mãe?

— Os da rua, ué.

— Hum! E por que viriam aqui na casa da senhora?

— Meninos são assim mesmo. Ou você já se esqueceu?

— Esqueci o quê, mãe?

— Ué, você e seus irmãos tocando a campainha da casa da dona Sebastiana e depois fugindo.

— Hum! Mãe, mãe, mãe! A senhora tá bem?

— Tô. Por quê?

— Ninguém mais faz essas coisas, não. Tá todo mundo ligado no celular.

Logo após entrar, Roberta quis saber se a mãe havia feito o bolo de fubá.

— Tá na cozinha. Mas não ficou bom.

— Hum! Quando a senhora diz que não tá bom é porque ficou ótimo.

Sentadas à mesa, as duas trocavam confidências. Quase nenhuma por parte da senhora, que andava alheia à correria do mundo. Passava os dias entretida entre poesias de antigos e novos autores, Cecília Meireles e Sarah Munck, Drummond e Luzia Couto, Augusto Frederico Schmidt e Daniel Marchi.

— Mãe, tem sorvete?

— Não.

— Hum.

— Seu pai gostava de flocos.

— Eu sei. Também é o meu favorito.

— Prefiro chocolate.

— Não era morango?

— Também.

— Será que aquela sorveteria da esquina tá aberta?

Solange olhou o relógio de parede. Quase cinco da tarde.

— Tá.

— Vamos lá?

A idosa, diante do sorriso de menina da filha, não sentiu a menor vontade de contrariá-la.

— Só vou colocar uma roupa melhor.

Cinco minutos depois, a mulher retorna e fica diante do espelho da sala.

— Roberta, minha filha, tô achando esta roupa tão feia.

— Então, troca, mãe.

— Não.

— Não?

— Sou velha. Tenho direito de me vestir assim.

Roberta achou graça daquelas palavras e, antes que pudesse dizer algo, a mãe complementou:

— Ah, meu Deus, como esta roupa é esquisita! Mas vamos, que o sorvete vai acabar derretendo.

As parentas gargalharam e se dirigiram à sorveteria.

……………………

Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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