Medo e insegurança
Entre Promessas e Vigilâncias Invisíveis
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O casamento, hoje, nos assusta.
Não por falta de crença no amor, mas por excesso de memória. Nós já estivemos dentro de casas onde o afeto tinha rotina, horário marcado e palavras bem ensaiadas. Nós já dormimos ao lado de alguém que oferecia beijo de boa noite, dizia “eu te amo” com naturalidade e saía pela manhã levando consigo uma duplicidade que só descobrimos depois. O amor estava presente, mas não estava inteiro.
Aprendemos, às duras penas, que nem toda intimidade é verdade, e que convivência não é sinônimo de lealdade. Existe um tipo de traição que não começa no corpo, começa na naturalização da mentira. E quando ela se instala, tudo vira performance: o café da manhã, as mensagens durante o expediente, o “volto cedo”. Nós aprendemos que há violências que não deixam marcas visíveis, mas reprogramam completamente a forma como passamos a confiar.
Por isso o medo.
Não o medo infantil de amar, mas o medo adulto de repetir estruturas que nos adoeceram. Nós não tememos o compromisso, tememos a vigilância emocional, a dúvida permanente, a necessidade de decifrar gestos simples. O casamento passa a nos parecer menos um projeto de futuro e mais um campo de risco, onde a promessa pública não garante ética privada.
Há algo profundamente político nisso.
Quando a sociedade insiste em tratar o casamento como destino natural, ignora que muitas de nós chegaram até aqui depois de atravessar relações que minaram a autoestima, a saúde mental e a confiança no próprio julgamento. Não é desamor: é autopreservação. Não é cinismo: é consciência histórica do que já vivemos.
Nós começamos a entender que amar não deveria exigir suspeita constante, nem prova diária de fidelidade. O amor que queremos não pede monitoramento, não exige silêncio cúmplice, não se sustenta em discursos enquanto pratica o oposto na ausência. O amor que queremos é coerente e coerência é algo raro em estruturas que privilegiam aparência em vez de verdade.
Talvez por isso hoje escolhemos com mais cuidado.
Talvez por isso demoramos mais.
Talvez por isso o “sim” só faça sentido quando não for uma tentativa de reparar o que nos feriu antes.
E aqui está o que fica para quem lê e se reconhece:
nós não estamos quebradas por termos medo. Estamos mais lúcidas. A vida continua quando aprendemos a não romantizar o que nos machucou e a não negociar aquilo que nos custou tanto reconstruir. O amor não precisa ser um risco permanente para ser profundo. E se ele vier, que venha inteiro porque nós já sabemos o preço de aceitar metades.