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Redcap (Parte IIi)

Envolto em sonho, herói é transportado ao passado

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Autor/Imagem:
Renan Damázio - Foto Francisco Filipino

Damião era um homem de grande porte, rústico, bruto, mas com um coração gentil. Sua barba por fazer e altura acima da média intimidavam, ainda mais se somados a sua força física. Tinha, no mínimo, noventa e cinco quilos de preponderantes músculos e um metro e oitenta e oito de altura. Por outro lado, Fernanda, sua esposa, era magra, usava um cabelo curto, na altura do queixo, tinha um semblante cansado e era o nervosismo em pessoa.

No meio das visões de Redcap, ele os via. Era como se tivesse teletransportado imediatamente para a sua casa, onde nasceu e cresceu, em Oswaldo Cruz, situado na Zona Norte da cidade carioca. Era uma casa simples, com piso ladrilhado na varanda, que servia como entrada. Um portão baixíssimo, como se desse um voto de confiança de que maldade alguma aconteceria com aquele lar.

Por dentro da casa, haviam retratos de diversos parentes, como avós, tios, primos, de muitas gerações. Os quartos eram grandes e bem divididos, mesmo que o estilo da casa fosse modesto e humilde. Todos os cômodos eram conectados por um estreito corredor, que envelheceu com uma coloração marrom fosco.

Parecia um dia de domingo, final de tarde. Uma angústia estranha tomava conta de todos os corações ali presentes. Talvez aquela mesma sensação de sempre, que trazem os domingos. Algo que nunca é explicado com clareza. Redcap ouvia ao longe o Domingão do Faustão, com o apresentador explanando sobre o próximo convidado especial, que iria se apresentar. Sua mãe estava passando roupa, enquanto seu pai movimentava-se pela casa na procura de um alicate, que havia se perdido quando eles fizeram uma troca de uma peça (que Redcap não sabia o nome) do banheiro.

A consciência se materializou ao lado de Redcap novamente, enquanto ele observava tudo a sua volta com grande deslumbre e atenção. Parecia um sonho, mas com um nível de detalhes que nunca havia sonhado antes.

– Já se situou? Sabe onde estamos? – indagou a dama, com um sorriso curto entre seus lábios e uma aura gentil.

– Sim, estamos na casa dos meus pais. A casa onde eu vivi grande parte da minha vida, antes de me mudar para o Centro. – ele disse, enquanto sua cabeça e seu olhar movimentavam-se, na intenção de seguir o caminho que seu pai traçava de um lado para o outro.

– E por que acha que está aqui?

– Eu não sei. Não me lembro.

Após responder a consciência, Redcap viu um menino sair de um dos quartos. Era o dele. Ele se viu, após tantos anos, como uma criança. Um menino com seus 10 anos de idade. Já usava o seu boné vermelho característico. Tinha em seu rosto o semblante de revolta e tristeza, mesmo que ainda tão pequenino.

– Esse sou eu. Eu tinha acabado de comprar esse boné. – ele disse, com um sorriso no rosto, espantado com aquela visão.

– Rafael, meu filho, já separou seus materiais para a aula de amanhã? A semana já vai começar de novo! – alertou Fernanda, que tinha acabado de notar a sua saída do cômodo.

– Já, mãe. E vou de boné, pra mostrar para os meus colegas que não sou igual a eles.

– Por que isso, Rafael? Alguém te magoou dizendo algo sobre a sua aparência? – indagou Fernanda, preocupada com o bem-estar do filho.

– Não. É que eu não quero ser igual a todo mundo, mãe.

Enquanto o diálogo ocorria, Damião entrava novamente no cômodo. Estava com pressa, mas parou ao ver o filho dizer aquilo. Se aproximou, ajoelhou-se lentamente, pegou na mão do menino e lhe disse:

– Rafael, todo mundo é igual. Todo mundo é carne, tem sangue, tem necessidades básicas, busca alguma coisa no Mundo e morre. Nunca se esqueça disso. Você pode querer ser diferente, mas no final, todo mundo é tudo isso. O que te faz diferente dos outros é o que você faz enquanto está vivo. Nisso, as pessoas são completamente diferentes. – ele sorriu, mostrando os dentes grossos e desalinhados, que nunca viram um aparelho – E então, filho, o que você quer fazer de diferente?

– Usar meu boné vermelho me faz diferente. – respondeu, ingenuamente.

– Hahahaha Será?! – refutou o pai. – Você logo irá descobrir.

Redcap assistia aquela cena com vergonha de si mesmo. Apenas uma criança ingênua, que não absorveu a mensagem em decorrência da sua ignorância. O problema é que sentia que ele havia levado essa ignorância adiante por tempo demais. Já era um homem de 30 anos e aparentemente, embora tivesse feito coisas boas, não se diferenciou da manada de pessoas. Não se desvinculou da correnteza. A massa era parte dele, e ele era parte da massa. Como uma grande metonímia. Sentia que não havia absorvido a mensagem por inteiro.

Olhou para a mulher que o acompanhava e sorriu de forma sem graça, como se tivesse sido exposto. Entendia o que faltava. Seus pais ainda estavam vivos e o que ele mais queria era agradecer por tudo naquele momento, mesmo que hoje eles fossem muito mais frágeis.

Uma mensagem tão simples que ambos passaram, com preocupações rotineiras e atenção zelosa, que chegavam até a sua versão mais velha, por meio do sonho, viagem no tempo e espaço ou alucinação, como se fosse um soco no estômago.

Ele fechou os olhos para meditar sobre aquilo em um instante, mas logo se desconcentrou, porque sentiu a sua consciência tocar novamente em sua cabeça. Ela sabia que ao pensar nos pais, pensaria também no trabalho e em como estava a sua vida agora. Logo se viu transportado novamente.

Neste momento, estava no Centro mais uma vez, mas em um tempo presente (ou quase isso). Era 29 de Junho de 2025. Ele estava trabalhando em um novo projeto publicitário para um evento de médio porte que a sua empregadora, J J Carterpie, tinha lançado. Até que gostava do trabalho. Não pagava mal, não atrasavam o salário e ninguém o aborrecia, mas na verdade, pra ser bem sincero, tinha repugnância das pessoas com que trabalhava.

Discursos motivacionais, críticas construtivas (que mascaravam pequenas humilhações diárias), excesso de trabalho por indivíduo e reuniões que facilmente poderiam ser um e-mail bem explicado. Tudo isso era cansativo demais. Sentia que aquilo não lhe cabia.

Um impasse desafiou-o novamente, pois percebeu que aquele trabalho seria essencial para novas oportunidades. Todavia, avaliando-o como alguém de fora da situação, identificou o quão nocivo era o ambiente nas suas entrelinhas. Pensou na oferta de emprego que recebeu, em outra empresa, com o mesmo salário e mesma carga horária. Tinha recusado. Talvez tivesse sido orgulhoso demais, por pensar que apenas o bom desempenho e o reconhecimento bastavam, já que estava estabelecido nesta empresa atual.

Mudar é difícil. Requer maturidade emocional, autocontrole, inteligência interpessoal e intrapessoal. O problema não era o dinheiro, mas a covardia, a estagnação e o comodismo. Chagas que assolam toda a humanidade. E foi isso que a dama de preto fez Redcap perceber naquele instante.

Ele parou por alguns minutos para andar pelos corredores do seu ambiente de trabalho. Olhar aquela vista maravilhosa que dava para a Ponte Rio-Niterói. Observou as mesas de seus colegas de trabalho, com lápis personalizados, canetas coloridas, anotações sobre tarefas futuras pendentes e alguns funko pops.

Pensou sobre o significado daquela suposta viagem astral e a razão de estar passando por tantas coisas sobrenaturais em um curto espaço de tempo.

– Que horas são? Não sinto o tempo passar. – ele perguntou, enquanto passava a mão sobre uma das cadeiras executivas.

– Não há tempo aqui. O tempo existe apenas para os humanos. Vocês condensam sua perspectiva de vida e tentam controlá-la em vão. – explicou a consciência.

Era muita coisa para Redcap. Muitos conflitos para uma madrugada. Não queria ver nada daquilo, porque sabia que tudo era verdade, mas tentava fugir para a sua melancolia e problemas com pessimismo.

Esfregou a mão sobre o rosto. Massageou, de maneira bagunçada, os cabelos castanhos. Respirou fundo e pensou no amor. Ah, o amor. Um grande conflito. Um óbice crônico.

– A próxima viagem te mostrará aquilo que você já sabe e tem tentado mentir para si. – adiantou a dama de preto, deixando claro que entendia o que se passava na mente de Redcap, enquanto preparava-se para colocar a mão sobre o seu crânio.

– Merda.

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A parte IV deste folhetim será publicada na quinta-feira, 24

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