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Ressentimento de fantasma?

Esquerda precisa esquecer medo e voltar às bases

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Autor/Imagem:
Claudio Carvalho - Foto de Arquivo

A palavra “ressentimento” passou a habitar recentemente, com mais força, o vocabulário da esquerda brasileira e de grupos difusamente identificados pela rubrica “progressistas”. É de se estranhar porque se trata de um termo identificado com o discurso antigregário de Nietzsche. Autor que também não pode ser facilmente relacionado com o Iluminismo a ponto de ser definido como “progressista”. Simplificando, talvez exageradamente, a premissa nietzschiana, poderíamos dizer que os mais fracos organizam leis, moral e religiões contra os mais fortes e que tais organizações gregárias e progressistas são frutos do ressentimento de humanos fracos contra aqueles mais poderosos da espécie.

Por isso, não deixa de soar esquisito que certa esquerda namastê e psicanalisada retorne a Nietzsche e, talvez, mais ainda às paixões tristes de Spinoza, ou quem sabe a Freud para associar tudo o que não entendem na adesão popular ao pânico moral insuflado pela extrema-direita a uma espécie de ressentimento. Pessoalmente, não gosto de psicologização rasteira e de medicalização. O hiato que surgiu entre o chamado progressismo e um povo cada vez mais fascistoide não pode ser simplesmente ressentimento. De fato, penso que falta divã e autocrítica à esquerda namastê que se apressa a chamar de ressentido a nosso iludido povo que quer se salvar do abismo aderindo ao empreendedorismo, a ditaduras de toda espécie e até ao apocalipse.

Essa conversa começou porque ouvi, não lembro se no bar ou no Facebook, um bem-intencionado e moralmente superior integrante da esquerda cirandeira e namastê, a reclamar de uma conversa que ele ouviu na padaria, naquela manhã, antes de nos encontrarmos na timeline ou na Praça São Salvador. Porque, devo confessar, eu também me tornei bem próximo à esquerda namastê. Que fazer?

O cara dizia:

-Na padaria, hoje cedo, a balconista conversava com o cliente: ninguém trabalha, não! O governo dá bolsa família, paga o estudante pra estudar, ninguém quer nada com nada… no meu tempo era trabalhar na roça desde criança, e depois arranjar emprego.

Contava que o cliente concordava e dizia que foi igual com ele. E concluía: hoje em dia é só mamata…

Meu amigo lamentava o teor do diálogo. Afirmava que parece que querem que todos sejam explorados como antigamente… E falava de sua tristeza e decepção com nosso povo. Indagava porque a cidadania e a civilidade soam tão mal para uma parte da população, seja pobre, remediada ou rica?

Eu pensava com meus botões ou com minhas teclas: esse tipo de discurso rancoroso contra a “mamata” aparece mesmo e muito por aí. Mas, antes de acusarmos nosso povo de ignorante e reacionário, é preciso colocar as coisas em contexto. O Brasil, que entre 1930 e 1980 teve grande crescimento, é um país em franca desindustrialização e que não gera oportunidades de bons empregos faz um tempão. “Cidadania e civilidade” é turbinar um modelo econômico que cria a miséria e distribui bolsas e subempregos para os miseráveis? Não há empregos dignos e os governos, inclusive os ditos progressistas, se limitam a seguir receituários neoliberais e distribuírem bolsas e a colocarem trabalhadores sem carteira na lista dos que têm emprego. O país anda à deriva, sem plano de interesse nacional algum e servindo aos interesses da banca financeira e do agronegócio. O que aquelas pessoas na padaria aparentemente querem dizer é que ninguém quer trabalhar e querem viver de bolsas. Mas, o que eles não percebem é que os jovens simplesmente não podem trabalhar como antigamente. Não há empregos decentes e nem perspectivas de uma vida melhor.

Uma falsa esquerda, como o lulismo, por exemplo, se limita a administrar e tentar remediar com “programas sociais” as mazelas do capitalismo que eles desistiram de combater. Isto é Haddad e seu Arcabouço Fiscal. Aí, a direita consegue fingir que é a força antissistêmica e coloca discurso reacionário na boca do povo. E depois, um progressista que ainda pode ir à padaria vem chamar nosso povo de ressentido? Francamente…

Precisamos de uma esquerda de verdade, que possa acabar com a mentirada da extrema-direita. Precisamos de indústrias, bons empregos, verdadeira distribuição de renda, reforma agrária, um Estado capaz de induzir o crescimento e investir em ações de interesse nacional, o fim desse Arcabouço Fiscal, pra começo de conversa… Ou ficaremos a culpar os pobres que conversam em padarias e a chamá-los de ressentidos.

É urgente que uma esquerda, para usar uma expressão do Safatle, que não tenha medo de dizer seu nome, volte ao trabalho de base, à mobilização e há educação social. Em lugar de voltar para casa com o pão quentinho ou agradecer as migalhas que caem da mesa do agronegócio e da banca financeira como conquistas da cidadania e da civilização, será preciso organizar o povo e mostrar saídas para que exista distribuição de riqueza e liberdade produtiva.

Imaginei meu querido amigo namastê dizendo que não dá pra ignorar que, ainda com todos os erros cometidos, estaríamos muito pior sem o PT. O vi imaginando se a balconista tem filhos no Ensino Médio ou se o cliente tem algum parente que recebe bolsa família. E se dizendo espantado com a recusa ao que temos direito e afirmando heroico: isso é adubo para a direita!

Fiquei matutando a minha resposta. Já imaginou, caro progressista, que eles estão reivindicando, de forma desastrada, uma chance real de ganharem seu próprio pão com autonomia e sem depender de migalhas?

Se estaríamos pior sem o PT? É um pensamento contra factual que tenho dificuldade de fazer. Na eleição presidencial passada? Com certeza. Tanto que fiz campanha para o Lula (depois, chegando em casa, eu vomitava). No longo prazo, depois da dita Abertura? Aí, o fato é que houve o PT e que líderes anarquistas, comunistas e trabalhistas foram dizimados, difamados, destruídos. Foi feito um verdadeiro trabalho cirúrgico de extermínio da velha esquerda que ameaçou o imperialismo com as Reformas de Base. Inclusive, o termo “imperialismo” saiu de moda.

Aí eu penso que o PT foi a esquerda fake que ajudou o imperialismo a destruir o trabalhismo e os sindicatos trabalhistas, anarquistas e comunistas que havia. Como disse certa vez o Brizola: “o PT (e depois seu puxadinho PSOL), é a esquerda com que a direita sempre sonhou. Apesar de haver muita gente de valor nas duas agremiações.

Ah, eu também pensava, o PT não cometeu erro algum. Sempre fez exatamente o que quis fazer. Embora, não exatamente o que dizia que faria ou que estava fazendo. Não houve acaso, houve projeto.

Imaginei meu cordial amigo progressista namastê afirmando que meu julgamento estava sendo excessivamente cruel. Falando que nós vimos a formação do PT, nas greves e nos movimentos populares, que ajudamos na minha fase secundaristas e de início de nossas faculdades, que andamos com estrelinhas vermelhas na lapela. Não dá pra jogar uma luta de muita gente nas costas do “lulismo”! Infeliz ou felizmente é a esquerda que temos por hoje.! Descredenciar não vai melhorar nossa realidade de total falta de partidos dignos de confiança! E vai falar com saudades do Brizola e seu bom humor, que o PT, a Globo e a mentalidade predominante do “marxismo liberal e autonomista da USP e da Igreja progressista ajudaram a destruir e difamar.

Eu pensava comigo: meu caro, a situação que vivemos é mais cruel que qualquer julgamento meu. Somos, sim, da mesma geração e fomos igualmente enganados pelo sindicalista que estudou sindicalismo na Alemanha Ocidental e no Japão, pelo “marxismo liberal” da USP e pela doutrina social da Igreja. Eu também cantei de forma injuriosa: “vamô entrar de sola, vamô entrar de sola, fazer reforma agrária na fazenda do Brizola…” E não se fez Reforma Agrária alguma. Nem na suposta fazenda do Brizola, nem na fazenda da Tebet ou do Blairo Maggi ou em terras improdutivas. Somente Belchior não nos mentiu: “eles venceram e o sinal está fechado pra nós…” Tudo o que aconteceu, inclusive o PT, nos levou ao Bolsonaro e à sua conversa na padaria. Há uns poucos que prestam no PT? Há, sem dúvida. Mas, só haverá esquerda novamente no Brasil depois de superado esse agrupamento mais falso do que uma nota de três reais. Tudo bem! Cumpriu mal e porcamente seu papel, é o que temos mais perto de um partido de massa no Brasil, talvez, ainda possa ser transformado em uma organização de esquerda, apesar da pelegada hegemônica…

Sei não…

O que julgo saber é que temos que ouvir e dialogar com a balconista e seu cliente. Eles realmente julgam que a força antissistêmica são esses fanáticos ignorantes que os fazem rezar para pneus? Eles podem crer no fim do mundo e não no fim do capitalismo? Eles têm horror a direitos ou a esmolas? Eles são ressentidos de nós ou nós nos ressentimos deles, de seus valores e tradições? Já que desistimos de transformar o mundo devemos ficar sonhando em transformar nosso povo segundo a nossa imagem progressista e namastê? O que o aparente rancor do povo tem a dizer? Precisamos de um novo povo ou da velha esquerda que ouse dizer seu nome?

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@claudiocarvalhoautor, publicou poemas, contos, romances, livros acadêmicos, ensaios. Ativo participante de saraus literários. Teve peças de teatro montadas. Fez letras de música popular. Seus trabalhos literários mais recentes são: “O Canal,” “365-D: a corda esticada entre o vazio e a coisa amada”, “Ninguém Escreve por mim: textos da Oficina A Palavra Escrita”, “História e Prática 2023” e “Cem, Sem, Zen: Sonetos”. Graduado em História. Mestre e Doutor em Vernáculas e pós-doc em Estudos Culturais. Professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Ensino Superior. Coordena a Oficina Palavra Escrita: História e Prática. Membro efetivo da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ)

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