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Preconceitos

Estigmas

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Autor/Imagem:
Luzia Couto - Foto Francisco Filipino

Era uma manhã qualquer em São Paulo, daquelas em que o sol tenta furar o concreto cinza da cidade, mas a pressa das pessoas parece não dar espaço pra ele. No metrô, lotado como sempre, Ana segurava firme no corrimão, fones de ouvido plugados, tentando ignorar o aperto e o cheiro de café requentado que vinha de algum canto. Ao lado dela, um rapaz de cabelo colorido e piercing no nariz mexia no celular, alheio aos olhares tortos que recebia de uma senhora de meia-idade. “Esses jovens de hoje…”, a senhora murmurou, alto o suficiente pra ser ouvida, baixo o suficiente pra fingir que não era com ele.

Ana sorriu por dentro. Já tinha ouvido algo assim antes, mas não sobre cabelo colorido. No caso dela, era o fato de ser uma mulher de 35 anos, solteira, sem filhos, e pior sem vontade de ter filhos. “Você tá esperando o quê? O tempo passa, viu?”, diziam as tias no Natal, com aquele tom que misturava preocupação e julgamento. O estigma, esse velho conhecido, não perdoava. Não importava se Ana era bem-sucedida na carreira, se viajava o mundo ou se sentia plena com suas escolhas. Para muitos, ela era uma peça fora do tabuleiro, uma anomalia que desafiava o “script” da vida.

Enquanto o metrô sacolejava, Ana pensava em como os estigmas ainda moldam o jeito que as pessoas se veem e se julgam. O rapaz de cabelo colorido, por exemplo. Provavelmente um artista, um estudante, alguém com sonhos tão válidos quanto os de qualquer outro. Mas, para a senhora do metrô, ele era “rebelde sem causa”, um estereótipo ambulante. E o que dizer da colega de trabalho de Ana, que, por ser gorda, ouvia piadinhas disfarçadas de “preocupação com a saúde”? Ou do amigo que, por ser gay, ainda precisava se explicar em rodas de conversa, como se sua vida precisasse de um selo de aprovação?

Os estigmas de hoje não são tão diferentes dos de ontem, Ana refletia. Eles só mudaram de roupa. Antes, vinham em forma de fofoca na vila ou olhares na igreja. Agora, estão nas redes sociais, nos comentários anônimos, nas indiretas em grupos de WhatsApp. A tecnologia deu ao julgamento uma vitrine maior, mais brilhante, mas não menos cruel. É o “você não é magra o suficiente” nas fotos editadas do Instagram, o “homem não chora” que ainda ecoa quando alguém ousa mostrar vulnerabilidade, ou o “você é velho demais pra isso” quando alguém de 50 anos decide aprender algo novo.

Mas havia algo de esperançoso naquele vagão, Ana notou. O rapaz de cabelo colorido sorriu pra uma criança que o encarava com curiosidade, não com julgamento. A criança riu de volta, apontando pro cabelo como se fosse uma obra de arte. Talvez o futuro fosse menos rígido, pensou Ana. Talvez as novas gerações, com sua mania de questionar tudo, estivessem começando a desmontar esses rótulos, um de cada vez.

Quando desceu na sua estação, Ana decidiu que hoje não se importaria com os olhares ou os “conselhos” não solicitados. Ela era quem era solteira, feliz, livre. E se alguém quisesse colar um estigma nela, que colasse. Ela já sabia que rótulos não definem quem a gente é. São só palavras mal costuradas, que desmancham com o tempo.

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