Fim de um tabu
Eu já vivi a dor e o medo do câncer. Foi em 2022
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Obviamente foi um momento doloroso. Mas, na minha experiência, além do óbvio sofrimento, houve também algo mais difícil de admitir: uma espécie de zona de conforto que se formou no meio do caos. Um lugar que eu passei a ocupar: pela primeira vez na vida me senti autorizada a ser cuidada.
Em meio ao tratamento, as cobranças do mundo param de bater na porta com tanta força. Pela primeira vez, eu não precisa mais corresponder ao desempenho, ao humor constante, à produtividade.
Percebi que as pessoas estavam dispostas a cuidar de mim. E que eu não precisava ser forte o tempo todo. Aliás, ninguém esperava que eu fosse. As pessoas olhavam pra mim com uma delicadeza que eu talvez nunca tivesse sentido antes. E isso, por mais contraditório que pareça, teve um lado acolhedor.
É paradoxal, mas tem algo de acolhedor em ser vista, em ser tocada com delicadeza, em não precisar esconder a dor. Pela primeira vez, senti que minha vulnerabilidade não era um defeito, era um passaporte para o afeto.
E quando o tratamento acabou e a vida começa a voltar ao “normal”, a saída desse lugar — por mais desejada e celebrada que seja — pode ser confusa, até dolorida. Sair desse lugar de cuidado pode não ser tão simples quanto parece.
Quando a doença vai embora, junto com o alívio vem também um certo vazio, uma perda de espaço. De repente, volta-se a ser a pessoa que dá conta, que resolve, que cuida. O mundo espera que você volte a ser aquela pessoa de antes. Mas você já não é.
Você sobreviveu, mas alguma parte sua ficou ali, naquele tempo suspenso em que a doença fazia de você o centro. Um centro de cuidados, de atenção, de delicadeza. E é difícil abandonar esse centro e voltar a ser margem.
E, embora a saúde recuperada seja uma vitória imensa, há também sentimentos ambivalentes que surgem: saudade do carinho explícito, medo da solidão funcional, dificuldade em retomar a identidade de antes ou mesmo construir uma nova.
Falar disso ainda é um tabu. Espera-se que quem venceu o câncer apenas comemore, agradeça e siga em frente. Mas a experiência é mais complexa do que isso. E eu escolho dar voz a essa complexidade, porque talvez eu não seja a única a me sentir assim.