O viajante
Fazendeiro encontra velho de feições andinas que lhe faz uma revelação
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“Parei aqui, porque devia partir no dia seguinte e, além disso, chegara a hora em que me reclamava outro amo, cujo serviço nos absorve diariamente metade do tempo. As obrigações que nos impõe, executamo-las de olhos fechados.”
Marcel Proust, O tempo redescoberto, livro 7 de Em busca do tempo perdido.
Clóvis era dono de uma propriedade no Pantanal, não um latifúndio, mas uma fazenda de bom tamanho. Tendo meia dúzia de peões, não fazia, mandava fazer – mas, no mínimo uma vez por semana, despertava esgotado, como se tivesse feito esforços físicos à noite inteira. Havia procurado um médico, que lhe receitou suplementos vitamínicos, mas não adiantou. O metabolismo dele era assim, e ponto final.
Certo dia, ele visitou os arredores de Corumbá, para ver umas terras que estavam à venda. Ao caminhar pelos campos, deparou-se com um velho de feições andinas. O senhor o olhou fixo, depois sorriu e cumprimentou:
– Buenos días, viajero.
“Bom dia, viajante”, traduziu Clóvis, de imediato. E respondeu cortesmente em bom castelhano, não no portunhol que servia de língua franca naquelas paragens.
– Buén día, señor.
(A partir desse ponto, os diálogos aparecerão em português, mais fácil para mim e para os leitores.)
– Além de andar à noite inteira, agora caminha de dia? – brincou o idoso.
O fazendeiro não gostou da observação, mas se manteve cortês.
– De noite? Não entendi. Por favor, explique, senhor.
O velho aproximou-se, abriu um sorriso amistoso, sentou-se no chão, sinalizou para que Clóvis fizesse o mesmo e começou a falar.
– Você é um viajante de sonhos. De vez em quando, deixa seu corpo para visitar outros lugares. Nascem milhares assim, em todos os países, e alguns passam a vida esgotados, sem saber o que lhes acontece. Os pobres não tiveram a sorte de encontrar um mestre de sonhos que os orientasse. Você teve, serei seu mentor, vou ensiná-lo a transformar em bênção aquilo que você até hoje considerou uma maldição.
As instruções mais complicadas diziam respeito a conservar a lucidez na dimensão onírica. O brasileiro ouviu tudo com atenção e prometeu realizar os exercícios mentais prescritos. Em seguida, o velho lhe descortinou diversas possibilidades oferecidas a um viajante de sonhos.
– Você pode se tornar um espião regiamente pago, copiando documentos sigilosos de qualquer governo. Ou ser um hábil assaltante, capaz de penetrar em qualquer caixa forte. Talvez prefira se transformar em um amante inesquecível, visitando moças e esposas guardadas a sete chaves pelos pais ou pelo marido – e, em um tom mais baixo, acrescentou. – E pode matar seus inimigos impunemente.
– Fale mais sobre esse ponto – murmurou Clóvis, pensando em um fazendeiro vizinho, que já se apoderara de parte de suas terras.
– Os assassinos oníricos costumam utilizar auxiliares, em geral cobras peçonhentas, que atacam a vítima. Depois do crime, é muito importante olhar fixo para o bicho e dizer, “Auxiliar valioso, volte para seu lugar na dimensão de vigília”. Exatamente essas palavras.
O brasileiro prometeu fazer tudo direitinho, agradeceu pelas lições e se despediu.
De volta à fazenda, tratou de alugar uma casa em uma cidade próxima, para dispor de um álibi a toda prova. Gravou em sua mente cada detalhe da residência: era o que lhe permitiria voltar à casa depois do crime. Praticou todos os exercícios psíquicos para se mover, consciente, na esfera onírica. Quando se julgou pronto, capturou uma jararaca-do-cerrado e a encerrou em um saco de lona resistente.
Na mesma noite, penetrou no quarto do fazendeiro rival, que dormia. Abriu o saco e lançou a serpente em cima dele. Acordando com a picada, em um reflexo, a vítima lançou a jararaca para longe – e esta voou na direção de Clóvis, picando-o também.
Apavorado com a ideia de morrer, o agressor só pensou em retornar à casa alugada e em seguida buscar ajuda médica. Mas demorou, estava nervoso, o deslocamento não acontecia, o agredido gritava, pedindo auxílio… Afinal, conseguiu se transportar, mas esqueceu de encaminhar a serpente para o lugar dela, na dimensão de vigília. O animal deslizou para algum desvão na esfera onírica, onde se escondeu.
Os dois fazendeiros morreram em locais diferentes, com uma diferença de poucos minutos. A jararaca-do-cerrado, por sua vez, continua no mundo dos sonhos, assustada, enraivecida, à espera do próximo viajante incauto que ouse penetrar no que já considera seus domínios.