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Rodas

Fazia um calor de rachar, de untar o bestunto

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Alguns contos meus, não direi quais, foram baseados em antigas piadas.

Divirto-me em lançar mão de saberes populares transmitidos em papos de moleques, em meio a risadas e palavrões, e transformá-los em literatura, no mínimo em algo escrito, destinado a durar.

O conto que vocês vão ler pertence a essa categoria. Ouvi a historinha na adolescência e, por algum motivo, fincou raízes em meus neurônios. Só espero que o causo não tenha percorrido o caminho inverso, quer dizer, surgido como crônica e sendo resumido como piada para divulgação urbi et orbi. Se for assim, juro, o plágio é involuntário.

Agora, o conto.

Uma rua qualquer do centro do Rio de Janeiro, década de 1960. Fazia um calor de rachar, de untar o bestunto (como se escrevia no final do século 19), de fritar os miolos. Suando em bicas, um homem conduzia o seu burrinho sem rabo, carregado com objetos jogados fora. Seguia para um lixão – a ideia de reciclagem não existia na época – onde muitas daquelas coisas fariam a felicidade dos mais humildes, quer dizer, dos pobrezinhos de marré marré marré.

O carroceiro chamava-se Antônio, sobrenome dispensável. Tinha 58 anos e sempre agradecia aos céus por ainda ter forças para trabalhar. Era com o esforço de seus braços que assegurava seu sustento e o da mulher. Os dois filhos já eram adultos e tinham suas próprias famílias.

De súbito, em uma esquina, viu uma mulher chorando, caída na calçada. Era velha, aparentava ter mais de 70 anos, usava roupas esfarrapadas e tinha um ferimento feio na perna esquerda. Antônio aproximou-se e perguntou, solícito:

– O que houve com a senhora?

– Fui atropelada por uma bicicleta – respondeu a provável sem-teto (mentira minha, na época ela seria chamada de mendiga, de moradora de rua, no mínimo de indigente, mas foi o termo “mendiga” que veio à cabeça de Antônio). – Me feri naquela pedra – apontou para uma irregularidade no calçamento, perto do meio-fio. – Está doendo pra caramba!

– A senhora precisa ir a um hospital, limpar a ferida, levar uns pontos. Suba no carrinho, eu a levo.

– Mas meu filho, vestida assim, não vão me deixar entrar…

– Vão sim. Vou levá-la a um hospital público, fica no meu caminho – e insistiu:

– A senhora é magrinha, eu a coloco no carro e a levo sem problema.

Dizendo essas palavras, pegou a mulher com cuidado, para não machucá-la ainda mais, e a depositou entre as tralhas.

Nesse momento, um transeunte que assistira a todo o episódio soltou uma pérola de maldade, bem carioca:

– É, mermão, hoje em dia, pra pegar mulher no Rio, só de carro.

E, explorando os dois sentidos do verbo rolar, concluiu:

– Sem rodas, não rola!

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