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Padre Bernardo

Gêmeos perversos

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

Thiago e Matheus, gêmeos univitelinos, viviam aprontando desde a mais tenra idade. E todos ao redor pareciam se divertir, mas não porque as brincadeiras eram do agrado. Era simplesmente por uma questão de pertencimento. Pois é, os irmãos nasceram herdeiros.

Thiago, cinco minutos mais velho, talvez o mais malévolo, tendia a provocar medo nas pessoas, enquanto o caçula, vez ou outra, parecia pender para a candura. O problema é que ele era, de certo modo, dominado pelo irmão, que sempre o puxava de volta para o lado vil.

— Deixa de ser medroso, Matheus!

— Não é medo.

— Então, é o quê?

— Você não nunca sente remorso?

— Remorso?

— É. Você viu como a Raimunda ficou da última vez.

— E daí?

— E daí? Você ainda pergunta e daí?

— Tu é mesmo um molengão!

— Não sou. Mas é que…

— É que o quê, Matheus?

— Às vezes me dá pena dessa gente.

— Pena? E tu agora é galinha? Có-có-có! Có-có-có!

— Para!

— Só paro se você vier comigo.

— Tá bom! Mas vai ser a última vez, hein?!

Nessa época em questão, verão de 1992, os dois, então com 15 anos, estavam passando alguns dias na fazenda dos avós, localizada em Padre Bernardo, município goiano próximo ao Distrito Federal. Provavelmente entediados pela calmaria do local, resolveram dar um susto na Josefina, a Fina, cozinheira da propriedade.

Mulher de estatura baixa, corpulenta, cuja face arredondada passava só bondade. Não poderia ser considerada velha, apesar de já passada com certa folga dos 50 anos. Aparentava certa timidez, mas sabia sorrir quando diante de uma boa conversa com os patrões, Esther e Hélio.

A ideia era esperar que todos dormissem, o que acontecia quase sempre antes das 22h. E foi o que ocorreu naquela noite de lua nova, o que tornou a região pura escuridão.

— Vamos, Matheus. Já deu a hora.

— Você tem certeza?

— Do jeito que está quieto, até se cair uma pétala dá pra se ouvir.

— Ok.

O quarto da Fina ficava na parte de trás da casa, logo abaixo do quarto dos rapazes, no segundo andar. Ela gostava de dormir de janela aberta, pois era muito calorenta. E Thiago e Matheus, com uma faca e muita paciência, haviam tirado todo o conteúdo de uma melancia, feito dois grandes olhos, um nariz e uma boca com dois dentes, um em cima, outro embaixo. Mais ou menos como os estadunidenses fazem com a abóbora no tal Halloween. Completaram a arte com uma lanterna e um pequeno toca-fitas na parte interna e prenderam um gancho amarrado a uma corda.

Tudo pronto, Matheus acionou a tecla do aparelho, que começou a reproduzir a voz do Zé do Caixão. Logo em seguida, com a ajuda do irmão, começou a descer a melancia iluminada pela luz da lanterna. Os adolescentes tentavam abafar o riso, até que, de repente, sentiram que alguém havia puxado a melancia com tanta força, que os dois, pegos de surpresa, acabaram soltando a corda.

Sem saber o que fazer, Thiago e Matheus voltaram para cama e fingiram dormir até que, finalmente, adormeceram. Só despertaram quando a manhã já avançava, e a avó os chamou para tomar café. Cheios de fome, os irmãos desceram a escada rapidamente e foram até a cozinha, onde, para surpresa dos dois, só encontraram a avó. Thiago, então, a interrogou:

— Ué, vó, cadê a medrosa da Fina?

— Medrosa? Por que tá falando que a Fina é medrosa?

— Ah, não é nada, não, vó.

— Pois saiba você que a Fina não tem medo de nada.

— De nada? Nem de assombração?

— Assombração? Hum! Thiago, você deve estar de brincadeira. A Fina nasceu no caos.

Antes que os gêmeos pudessem dizer algo, eis que a porta se abre e surge a Fina. Ela havia passado a noite na casa de uma das filhas, na cidade, o que deixou o Thiago e o Matheus confusos.

Fina tratou de encher uma xícara com o café e, virando-se para os jovens, disse:

— Não sei vocês, que são lá de Brasília. Mas, aqui na roça, ninguém resiste ao café da dona Esther. Uma delícia só.

A cozinheira sorriu e deu uma piscadela para os gêmeos, que, olhos arregalados, sentiram um frio correr por todo o corpo.

……………………

Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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