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Dinheiro do pão

Genival, abduzido, deu paz a Lina até à morte

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução das Redes Sociais

Aurelina Gomes Freire, conhecida por todos como Lina, mal recebeu a visita das regras, foi desposada pelo Genival, homem já feito, bem ali na área rural de Formosa do Rio Preto, Bahia. Por conta da união, Lina acrescentou Sousa ao final do nome.

Mal pisou no gélido chão das casadas, foi apresentada às agruras das despreparadas na noite de núpcias. Pobre Lina, deveria ter feito consulta prévia com a mãe. Mas como fazê-lo, se a genitora havia dado o último suspiro logo após o primeiro choro da recém-nascida? Criada pelo pai, eis que logo se viu criada do marido.

Não se sabe por sorte ou alguma mazela, as investidas de Genival sobre o frágil corpo de Lina não renderam frutos. Nada além de dores físicas, que esmigalharam todo e qualquer resquício de humanidade da jovem. É verdade que calejada ficou com o passar dos anos e, quando alguém a questionava sobre a vida de casada, Lina conseguia disfarçar uma tal felicidade que jamais lhe fez visita.

Os 20 chegaram arrastados, mas logo se transforam em 30, que caminhavam firmes para os 40, caso não acontecesse algo inesperado justamente na manhã do dia em que Lina completava 36 anos. Um presente, que a mulher só foi perceber durante a noite. Genival havia desaparecido e ela, finalmente, teve a primeira noite de paz. O cheiro do marido, é verdade, ainda impregnava o ambiente, mas isso não a impediu de dormir um sono tranquilo.

Logo cedo, Lina foi despertada pelos primeiros raios de luz que, atrevidos, invadiram o quarto pelas frestas da janela sem reparos. Ela olhou para o lado, ninguém ao lado. Para onde teria ido o Genival? Teria ido embora para nunca mais voltar? Quem sabe não fora comido por uma onça ou, melhor, enjoou da esposa e foi buscar acalento nos braços de outra?

Levantou-se, pisou o chão frio do quarto e foi para a cozinha. Abriu a porta e foi tratar de fazer suas coisas quando, então, esbarrou nos chinelos do marido, bem ali na entrada da casa. Havia uma nota, não muito graúda, mas o suficiente para passar o dia. Lina arqueou os joelhos e pegou o dinheiro. Curiosa, observou se havia alguém por perto. Nem sequer uma alma.

A mulher passou o resto do dia matutando sobre aquela situação. Genival desaparecido, dinheiro aparecido. O que aquilo significava? Acabou por se entreter com as coisas do dia a dia, até que a noite chegou e o cansaço a fez adormecer.

Despertou com a luz que entrava pelas frestas da janela. Passou as mãos sobre o rosto e, fingindo coragem, ergueu o corpo. Levantou-se e, novamente, se deparou com mais uma nota depositada sobre as sandálias do marido, que ainda continuavam no mesmo lugar. Tratou logo de pegar a quantia, idêntica à do dia anterior, e enfiá-la no sutiã.

A rotina prosseguiu pelos dias seguintes e por mais de ano. Lina se sentia livre pela primeira vez na vida. Não precisava fazer as coisas pra homem nenhum. Tanto é que ela até havia tratado de fechar todas as frestas da janela do quarto para esticar o sono até onde pudesse, ou melhor, quando quisesse.

Não havia hora certo pro café da manhã, que poderia ser até à tarde ou, se Lina não tivesse com apetite, nem acontecia. E assim eram as coisas, e estava tudo bem. O almoço virava janta e, se sobrasse, virava almoço no dia seguinte ou, se a mulher desejasse, que fosse tudo pras galinhas no quintal. Certo mesmo é que, todas as manhãs, lá estava uma nota sobre as sandálias do Genival.

Lina, apesar de se sentir como nunca havia se sentido, a curiosidade a consumia. Gostava da situação, mas não a compreendia, até que, certo dia, precisou ir à venda do Ulisses, que, além de comerciante, era afeito à leitura, coisa rara naqueles tempos em que quase ninguém sabia decifrar palavras. A mulher entrou tímida no estabelecimento, pegou o que precisava e entregou algumas notas pro dono.

– Dinheiro novo. Vi uma nota assim só na capital.

– Capital?

– Sim. Lá eles têm um banco que imprime notas novinhas que nem esta aqui.

– Então, essa veio de lá?

– Quase certo.

– Como assim?

– É que, não sei se a senhora sabe, o José, filho da dona Lúcia, foi abduzido.

– Abi o quê?

– Abduzido, dona Lina. Abduzido!

– E o que diacho é isso? É doença que mata?

Ulisses soltou uma gargalhada tão sonora, mas, não tardou, parou diante da seriedade da mulher. Pigarreou e explicou que o José havia sido levado pelos extraterrestres, coisa de outro mundo.

– Entendeu?

– Hum. E isso foi quando?

– Há quase um ano. Não sabia disso? Todo mundo comentou. Mas parece que encontraram o rapaz ontem à noite. Voltou pra casa todo abobalhado.

Lina retornou para casa. Estava certa de que Genival também havia sido abduzido. No entanto, só de pensar na possibilidade de o marido retornar, o dia desandou de uma maneira, que a mulher não teve ânimo para nada. Deitou na rede na varanda e adormeceu. Acordou com os raios solares no rosto. Olhou pro lado e lá estava mais uma nota sobre os chinelos do esposo.

Os dias foram virando semanas, que logo trataram de esticarem até formar meses e, por vez, anos. Se Genival havia sido abduzido ou não, isso acabou caindo no esquecimento. Certo mesmo é que a mulher pegava sempre uma nota depositada sobre as sandálias do marido. Dinheiro suficiente para as despesas.

A mulher, agora perto de completar 70 anos, estava deitada na rede na varanda. Acabou adormecendo e teve um sonho que nunca havia sequer imaginado sonhar um dia. Pois lá estava ela deitada naquela mesma rede, adormecida em seu sonho profundo, sonhando que estava justamente ali adormecida, quando, no sonho, surgiu um homem, pouca coisa mais velho ou pouca coisa mais novo. Ele exalava aquele agradável odor de manacá-de-cheiro. O sujeito se aproximou e lhe beijou os lábios.

A velha Lina, pela primeira vez na vida, sentiu o toque carinhoso de um homem. Não se sabe se isso foi um sonho ou apenas devaneio de alguém desejando algo que nem sabia existir. O seu corpo, totalmente nu, foi encontrado sobre a rede na varanda por um vizinho, incomodado pelo fedor da morte. Apesar do avançado estado de putrefação, algo chamou a atenção do homem, que não conseguia entender aquele sorriso na face carcomida da defunta. Quanto às sandálias, elas continuavam no mesmo lugar, mas, estranhamente, sem nota sobre elas.

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