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De Raulzito ao capitão

Gripezinha matou o primeiro no Dia que a Terra Parou

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Armando Cardoso* - Especial para Notibras

Março desponta no horizonte do mundo como um mês que deve ser esquecido, pelo menos até que um dia tenhamos a exata noção do que ele representou em 2020 e 2021. Precisamente no dia 12 de março do ano passado, uma quinta-feira, o Ministério da Saúde confirmava a morte da primeira paciente da Covid-19, uma paulistana de 57 anos. Antes da chegada das águas de março deste ano, iniciamos o mês com uma nova e perigosa vertente do vírus. Ainda sem o pleno aproveitamento da última prisão domiciliar e sem saber quando seremos vacinados, voltamos ao necessário isolamento social, uma das formas conhecidas de controle da doença. Apesar de, naturalmente, ter se transformado em um mês de tristes lembranças, março também é emblemático, pois teve um dia simbólico que jamais imaginamos fosse chegar.

Chegou, assustou, virou verso, música e continuamos sem saber como será encerrado. Terceiro mês do calendário gregoriano, março começa em Peixes, termina em Áries e é um dos sete meses com 31 dias. No dia 16, o fã-clube do falecido cantor e compositor Raul Seixas comemora exatos 44 anos em que um clássico da MPB se transformou numa infeliz coincidência para o mundo. Nesse dia de 1977, o baiano lançava o sétimo álbum solo de sua vitoriosa carreira, com uma previsão que tem tudo a ver com o momento que estamos vivendo. Muito mais com o que vivemos em 2020. Na inesquecível e clássica O Dia em que a Terra Parou, Raul criou um acontecimento que simbolicamente paralisou a vida do ser humano. O mundo ainda não era globalizado, mas o sentido da música era o de que, naquele fatídico dia, as pessoas ficassem em casa, deixando de ir ao trabalho, mercados, escolas, praças, botecos.

Era um SOS, um chamamento a Paulo Coelho, aos Super-heróis, ao riso franco e puro de Silvio Santos e a Mequinho para o salvamento do planeta. Mera coincidência com os dias de hoje. Como estamos nos tempos do politicamente correto, o isolamento acabou denominado eufemisticamente de quarentena. É só uma questão de semântica. A prisão domiciliar forçada é a mesma. O inesquecível Raul Seixas e sua Metamorfose ambulante errou por pouco. Ele previu apenas um dia de paralisação, mas em 2020 foram mais de 300, levando em consideração que nosso primeiro contato oficial com a Covid-19 ocorreu no fim do carnaval passado, entre 21 e 26 de fevereiro. No início da pandemia, os menos céticos, mesmo sem certeza, afirmavam que o mundo e o Brasil sairiam dela mais humanizados, mais crentes, mais solidários, mais religiosos e mais politizados. Se realmente ocorreu, ainda não percebi nenhuma mudança. Quem sabe quando acordar em 2022.

Certamente dedilhando um violão em suas andanças pelo céu de anil, Raul deve estar se perguntando: O que houve com 2020? O alquimista Dom Paulete teria de pronto a resposta: os bares fecharam, nossas mãos se embebedaram acima do permitido, as máscaras nos tornaram semelhantes e indiferentes aos cremes e perfumes usados pelos amigos (as) que conseguíamos ver, muitos foram internados, outros intubados e alguns morreram sem que pudéssemos velá-los. Pior foram as ruas. Ficaram sombrias, sem luminosidade e sem trabalho para as meninas de vida difícil. Fomos obrigados a descobrir que médicos, paramédicos e enfermeiros não são invisíveis. Perdemos muitas vidas, adquirimos novos hábitos, ganhamos medos, mas jamais esquecemos da alegria e do carnaval, que este ano não tivemos oficialmente, mas, por conta da ignorância de alguns, na calada da noite e nas festinhas clandestinas, o vírus voltou a circular com mais desenvoltura.

Aliás, foi justamente durante os festejos de Momo que percebemos que 2020 não existiria. A pandemia mudou hábitos, acabou com postos de trabalho, tirou Donald Trump de circulação, colocou o governo bolsonarista à prova, recuperou o poder de barganha do Centrão, gerou até agora 254 mil mortes e 11 milhões de casos, deixou muitas sequelas e sepultou temporariamente festejos seculares. Difícil culpar alguém antes, durante e depois do período pandêmico. Contudo, não devemos usar da hipocrisia para fazer de conta que o governo, depois de desdenhar da doença, perdeu tempo no controle e na imunização, razão pela qual tive de recorrer e lembrar de Dom Raul para algumas conclusões. Pedi ao Maluco beleza para Tentar outra vez uma nova Sociedade alternativa e, se fosse o caso, convocasse os mestres Cazuza e Renato Russo na tentativa de dissuadir o Carimbador maluco de evitar a Ideologia e apagar a ideia de que o Mundo anda tão complicado.

Não conseguiram. O resultado é que, desde 1º. de janeiro de 2019, o Brasil está essencialmente ideológico e cada vez mais complicado. O pior ainda está por vir. Por isso, precisamos mudar antes que o Exagerado político esqueça o Deus Gita e decida aceitar como definitivo o Dia em que a Terra Parou. Felizmente, as únicas coisas que esse insensato e tresloucado vírus não tirou do nativo da terra de Cabral foram a esperança e a criatividade. O povo feliz ficou sem a alegria do futebol, as festinhas populares, shows musicais e sem o carnaval. Entretanto, compensou as perdas com um novo tipo de entretenimento. Encontros virtuais nos quais, como determina a regra nacional, não faltam cervejas geladas, petiscos, alegria e bom humor, as lives streamings são o novo normal da distração humana.

Preocupados com as ordens da dona patroa, alguns optaram por criações domésticas, como as live louça, live banheiro e live janelas. Nada demais. Cada um sabe onde o calo aperta. Que bom que, para cerca de 43 milhões de fanáticos, restou o Flamengo novamente campeão brasileiro. E dessa vez não permitiram que o presidente populista vestisse o Manto Sagrado rubro-negro. Convenhamos que, longe de Jesus, o escrete preto e vermelho perdeu parte do brilho de 2019. Entretanto, em 2021, nas últimas rodadas do Brasileirão de 2020, novamente ganhou do Vasco de Wanderlei Luxemburgo, finalmente desengasgando o bisonho 4 a 4 do campeonato passado, com gol, nos acréscimos, de um tal Ribamar. Não se ofendam os extremistas da direita, mas quem realmente ficou ofuscado nesse período foi o governo federal, que teve de fazer das negativas da pandemia um emaranhado de manobras para não ser engolido pelo jeito educado e engomado do governador de São Paulo, João Dória, o primeiro a conseguir um antídoto para controlar o vírus mortal.

O governo dos sonhos de uma minoria acabou se transformando em pesadelo para a maioria, principalmente para os que, por razões que a própria razão desconhece, votaram num contra o outro. Confirmada a nova fase de quarentena, tentei encontrar em Raul Santos Seixas inspiração para não escrever sobre política. Difícil nos dias de hoje, quando o presidente da República faz da imunização em massa um ato político. Uma pena, porque milhares morrerão antes do próximo voto. Alguns minutos de reflexão e concluí que Raulzito morreu sonhando e que Bolsonaro sonha com a morte. A diferença entre devaneios e estupidez é a verdade. A principal delas está, com outro formato, na letra de Dom Raulzito. Não adianta procurar o posto para se vacinar, pois o vacinador e a vacina não estarão lá.

Busquemos apoio em outro brilhante compositor (Tom Jobim) para rogarmos a Deus que as Águas de março não inundem ainda mais o coração do sofrido povo brasileiro. Assim como Elvis Presley, Raul Seixas partiu no Trem das Sete, mas continua vivo e atualíssimo nos versos de Ouro de Tolo. “…É você olhar no espelho e se sentir um grandíssimo idiota, saber que é humano, ridículo, limitado e que só usa dez por cento de sua cabeça animal”. Pior “é acreditar que é um presidente, doutor, padre ou policial e que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social”. O termo presidente não consta da letra original. É de minha autoria. Por fim, de concreto jamais apagaremos da trilha sonora de nossas vidas O Dia em que a Terra Parou de Raul e a “gripezinha” do Jair. Ambas foram escritas em dias deste mês de março.

*Armando Cardoso é jornalista

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