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Escrínio da memória

Havia se apaixonado por uma lourinha desconhecida

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Foi no Brasil x Alemanha, final da Copa do Mundo de 2002. O jogo ainda estava 0 x 0. Juarez, 24 anos, assistia à partida, tenso, quando a câmara focalizou o público, que fazia uma ola.

Ele a viu. E se apaixonou perdidamente.

Era uma alemã (ou holandesa, ou inglesa, ou dinamarquesa, vai saber) loura, linda, em um vestido colante, que realçava seu corpo. Curtindo a ola, abriu um sorriso deslumbrante no meio da torcida. Não um sorriso ingênuo, não o sorriso arrogante de uma fêmea que sabe que é desejada; o sorriso franco de uma mulher de uns 20 anos, que se reconhece bela e atraente, mas não abusa muito desses atributos (só quando entregue aos jogos de sedução). As câmeras voltaram ao jogo, enquanto Juarez reconstituía cada linha de sua face encantadora, cada curva daquela mulher maravilhosa. Criou esse retrato de corpo inteiro, como um camafeu, e guardou-o em sua mente. “Está no escrínio da memória”, disse a si mesmo. Amava a palavra “escrínio”, tão pouco usada hoje em dia, sinônimo de porta-joias. Gostou da expressão.

A vida seguiu, Juarez casou, teve dois filhos, descasou, e sempre abria o porta-joias do psiquismo para contemplar sua amada. Ao mesmo tempo, assistiu a todas as reexibições da vitória brasileira, não para rever o show de Rivaldo e Ronaldo, e sim para reencontrar seu anjo louro. A coisa melhorou quando os avanços tecnológicos lhe permitiram gravar o jogo. Mas ela era ainda mais sedutora no escrínio da memória.

Em 2023, mais de 20 anos depois do penta, Juarez viajou para a Europa. Foi direto para a Alemanha, algo lhe dizia que se tivesse de encontrá-la, seria ali. Caminhou horas pelas ruas de Berlim, de Frankfurt, de Munique, e nada. Certa noite, quando andava a esmo pela zona portuária de Hamburgo, ele a viu.

Não era ela, claro. Ele tinha consciência de que o tempo havia passado para os dois. Mas os traços eram quase idênticos, devia ser filha ou sobrinha de sua deusa. Ela sorriu-lhe – o sorriso meio forçado e calculista de uma profissional que avalia se vale a pena abordar um otário.

– E então, quer se divertir um pouco, meu amor? – falou em alemão.

Ele não entendeu, mas não precisou. Perguntou em inglês:

– Quanto?

Ela disse, ele topou, foram para um hotel barato.

A transa foi uma delícia, a mulher tinha um corpo maravilhoso e fez de tudo. No final, Juarez deu-lhe o dobro da quantia e falou-lhe em inglês, idioma que ambos arranhavam:

– Quero mais uma hora. Mas não para fazer de novo. Vou contar-lhe uma história, você talvez não acredite, mas juro que é a mais pura verdade.

E contou tudo. Disse que havia se apaixonado por uma lourinha desconhecida, vista por uns dois segundos em meio a uma ola, no final da Copa do Mundo de 2002. E que a tinha revisto vezes sem conta, na gravação da partida e, em especial, na sua memória.

Ingrid, a fera em seus braços, era uma putinha sentimental, digna sucessora de Irma, la douce ou da Ilya do filme Nunca aos domingos. Acreditou piamente e observou:

– Deve ser minha tia, ela foi com o noivo à Copa na Ásia. E todos dizem que sou a cópia dela, igualzinha. Mora perto daqui, eu levo você até lá – deu um risinho sacana. – Ela está viúva, aproveite!

– Não vai ter problema por a gente ter transado? Por…

– Por eu ser puta? – cortou Ingrid. – Imagina, estamos na Alemanha, século XXI. Ajudo toda a família com a grana que os homens me dão.

Pouco mais de quinze minutos depois, chegaram a um apartamento modesto. Tocaram, e ELA abriu a porta.

O tempo, pantera desalmada, bem que tentou dilacerar sua beleza. Tentou, mas não conseguiu. Havia rugas quase imperceptíveis em seu rosto, e a pele havia perdido um pouco do brilho que ele recordava – ou que aplicara às faces do camafeu guardado em sua memória, tanto fazia. Ainda era belíssima. O essencial é que ela estava aqui, e, com lágrimas nos olhos, Juarez contou-lhe tudo.

– Eu tinha 22 anos… – disse, sonhadora. – Quer dizer que o senhor me viu por alguns segundos, naquele estádio, e me ama até hoje? – indagou, a voz embargada.

– Sim, mas a vi mais vezes. Em cada reexibição do jogo, que tenho gravado. – Não mencionou o escrínio da memória, era algo só dele.

Úrsula, a diva, se aproximou e o beijou. Um beijo de início suave, que foi esquentado, até quase incendiar o apartamento.

Ingrid deu um risinho e observou:

– Vou embora, vocês têm muito que conversar. E fazer outras coisinhas. Mas quero saber se acabou pra mim. Gostei de transar com você e, francamente, grana é sempre bem-vinda!

Juarez incorporou o espírito da Alemanha, século XXI.

– Por mim, não acabou. Se Úrsula não se importar, e acho que não se importa, posso encarar as duas. Não toda noite, ou morro disso – e riu. – Mas umas duas vezes por semana, pode ser?

Ficaram os três felizes, Ingrid com a grana garantida, Úrsula com um amor inesperado, ele no sétimo céu. Os três logo passaram a morar no apartamentinho, e Juarez sua a camisa para dar prazer às duas (sem ménage). Ele vai adiando sua volta ao Brasil, e desistiu do projeto de trazê-las consigo. Afinal, sonhos não devem ser transplantados e sim saboreados até o fim, quando e onde os deuses os oferecem.

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