Estranhos
Helena
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As pessoas vêm e vão de nossas vidas, algumas ficam por um tempo, constroem laços e se vão, outras apenas cruzam nosso caminho, um dia, um contato rápido e nunca mais as encontramos. Mas se engana quem acredita que esses encontros rápidos não marcam, não nos tornam melhores.
Eu adoro uma conversa e provavelmente atraio pessoas que também gostam. Normalmente as pessoas acham estranho aqueles indivíduos que se sentam ao seu lado no ônibus e, em minutos, contam metade da vida delas. Eu adoro, volto para casa com uma bela página do capítulo da minha muito bem registrado.
Assim conheci Helena, e não é uma personagem de Manoel Carlos.
Saí de Cachoeiro no ônibus das oito horas rumo a Vargem Alta, desci, segui da rodoviária até meu trabalho e, naquele dia, o sol de Cachoeiro tinha migrado para as montanhas. Trinta e seis graus, insuportável para um lugar frio como é a região.
— Caramba, o que aconteceu com frio daqui? Vocês expulsaram? Brinquei com o gerente que me atendeu.
— È, também não estamos aguentando esse calor fora do normal não, mas vou te falar, todo dia é um temporal, olha lá aquela nuvem, pode contar, à tardinha a chuva chega. Falou o gerente apontando para uma bonita e grossa nuvem acima de Vargem Alta.
Terminei meu trabalho e segui para a rodoviária, eu precisava ir até Castelinho, não conhecia o local, e os horários de ônibus eram bem restritos.
Após me informar na rodoviária, comprei a passagem, entrei no ônibus, sentei-me na poltrona da janela, coloquei o fone do lado direito e me distrai por uns instantes com a paisagem.
— Acho que vamos ser pegos pela chuva.
— Como? Pergunto tentando entender o que ouvi.
— Está chovendo todos os dias… está vendo aquela nuvem? Temporal… antes de chegar a Castelinho, vamos encontrar com ela. Diz a mulher sentada ao meu lado.
Sorrio, retiro o fone, guardo e dou atenção a ela.
A conversa rende, e muito. Descendente de italiano, alegre e muito boa de papo, saía de um assunto e entrava noutro com clareza e facilidade. Até que, a certa altura, entramos não sei bem como na história de vida dela.
Orgulhosa de sua descendência, a bela e meiga senhora me fala de sua infância com seus olhos verdes brilhando diante das recordações.
— Pois é, moça. Dizia ela. Somos nove irmãos, quatro meninas e cinco meninos. Quando éramos crianças, só tomávamos banho aos sábados, e nem era banho mesmo. Minha mãe colocava uma bacia de alumínio com água no quarto e, primeiro, eram as meninas, entrávamos as quatro, fechava a porta e a mais velha tomava conta. Fazíamos uma fila, cada uma lavava o rosto e os braços, secava e depois de uma em uma lavávamos as coisas, sabe né.
Ri.
— As partes íntimas? Pergunto não para corrigir, para ter certeza.
— Sim. Terminávamos e era a vez dos meninos, minha mãe trocava a água, minha irmã mais velha lavava as costas dos dois irmãos mais velhos, que trabalhava na roça, saía e tudo se repetia, cada um lavava o rosto e, depois, é as partes.
Sorri novamente.
— Ah! Tinha que ser do mais novo para o mais velho, para evitar que o mais novo pegasse alguma doença.
— Como assim?
— Para lavar o rosto, era do mais novo para o mais velho.
— Entendi.
— E comida? Mamãe não deixava ninguém tirar, ela colocava o prato de cada um, a mesma quantidade de comida e ninguém podia repetir, fritava um ovo e dividia em dois, cada um comia metade do ovo.
Nesse momento, percebi que o brilho no olhar dela sumiu.
— Minha mãe era meio mesquinha, eu não sei porque ela fazia isso, não passávamos por dificuldades, tínhamos uma terrinha, plantava de tudo, tínhamos galinha, porco… não sei, mas não tinha necessidade disso.
— Você me disse no início da conversa que sua família veio fugida do período Mussolini, que passavam fome, inclusive dentro do navio. Certo?
— Sim.
— Pensa o que deve ser fugir da guerra, passar medo, fome, escassez alimentar. A pessoa não perde o medo, na cabeça dela, hoje tem fartura, amanhã pode não ter o que comer, ela estava ensinando a vocês a sobreviver e lidando com medo.
— Verdade, sabe que era isso, eu nunca tinha pensado por esse lado, faz sentido agora, algumas vezes me senti magoada com isso, e agora percebo o quanto minha mãe era cautelosa e o quanto deve ter sofrido,
O temporal nos pegou, o motorista parou o ônibus, fechou todas as janelas, e o aguaceiro desceu.
Em meio à chuva, ao invés de puxar a cigarra, ela grita para o motorista:
— Para no próximo ponto para mim.
O motorista para, e ela desce, retira três caixas grandes que havia deixado na poltrona atrás do motorista, coloca no chão, abre o guarda-chuva em cima dela e das caixas, o motorista aguardando a arrumação paciente, um jovem se aproxima com a sombrinha aberta, com dificuldade pega duas caixas e segue, ela aguarda, imagino que ele vá voltar para buscar a outra.
O motorista inicia a saída do ônibus, ela está de costas para o Ônibus falando com o rapaz que caminha controlando as caixas e o guarda-chuva.
Ela se vira para o ônibus e grita para mim.
— Não me esquece, meu nome é Helena.
— Não vou te esquecer. Respondo, mas acredito que ela não tenha ouvido.
Passei dias refletindo sobre a história, e hoje, cinco anos depois, ainda me lembro, e penso que um estranho pode mudar nosso ponto de vista.