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Ouro aqui

Herança maldita de coronel fica perdida em fazenda

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto de Arquivo/Reprodução Freepik

Até onde a vista alcançava eram terras da fazenda do Coronel Amâncio. Terras herdadas de quem as ganhara de sesmaria, da majestade além-do-oceano, sem nunca haver participado de uma cerimônia de beija-mão. Ganhara por carta, com selo vermelho de cera e fita, chegada de navio e entregue por fidalgo. E naquelas terras se trabalhou, viveu, sofreu e morreu. E não eram só terras que se herdavam, eram também gentes e tralhas, que iam passando de geração em geração. Muita riqueza produzida por século e meio enquanto casamentos consanguíneos iam garantindo que os frutos se mantivessem na mesma árvore ou, de maduros, caíssem próximos.

Mas veio a abolição, veio a república, veio a revolução de 1930, o declínio do café. Até mesmo aquelas riquezas rurais se abalaram. E os dias passavam entre tediosos e modorrentos no topo da colina de moderada inclinação que era encimada pela casa-grande. Uma casa antiga térrea, de feições severas, com doze janelas de cada lado da grande porta que parecia de igreja. Esta porta levava a um salão onde os oito filhos do Coronel Amâncio reuniam-se para abrir uma carta que ele havia deixado, com instruções precisas para a partilha dos bens após suas exéquias, que se haviam dado na capela da própria fazenda.

O mais velho, Aquino, sentado à cabeceira da grande mesa de jacarandá, exercia sobre os outros sua natural liderança. À sua direita, os irmãos Rodolfo, Quitéria e Inácia. Sentados à esquerda, Orlando, Urbano e Umbelina. Na cabeceira oposta ao líder, Osvaldo, o único irmão que havia se afastado da família, passara na capital da república uma juventude de dissipações e encrencas e somente agora se reunia ao clã, para a última despedida ao velho Coronel, que se tornara retrato tipo medalhão na parede, coberto por vidro bombê.

Com cerimônia, Aquino pegou uma faquinha de abrir cartas e, segurando nas mãos o grande envelope, rompeu a obreia e desdobrou a folha lá contida, escrita numa fina e regular caligrafia, indicando ter sido preparada um pouco antes da doença que acometeu o Coronel Amâncio e o levou ao desenlace final:

“Fazenda do Espinhaço, 14 de junho de 1947. Meus filhos, a bênção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando lerem esta carta, terei partido deste mundo de lágrimas e ranger de dentes e repousarei na glória eterna aguardando a ressurreição dos mortos. Deixo-vos, em partes iguais, uma fabulosa fortuna que em muito supera o valor desta fazenda e seus aprestos. Tal fortuna encontra-se convertida em lingotes de ouro refinado, diamantes, rubis e esmeraldas, resultado de heranças de gerações e sábias economias feitas no curso de uma longa vida de trabalho árduo e privações dos prazeres deste mundo. Usem-na com sabedoria e não se esqueçam da caridade recomendada pelo Cristo para que, assim, a alma de vosso pai tenha descanso, junto com seus maiores. Na folha acrescida, instruções precisas para que se reúnam na mesa do barracão, observando rigorosamente a disposição dos móveis do local e vossa posição ao se sentarem lá. Adeus. Coronel Amâncio Lima Coelho Barbosa.”

Aquino olhou, curioso, o papel junto à carta. Era um bilhete menor, apenas a explicar que deveriam fazer a partilha da herança em partes iguais, em reunião à volta da mesa redonda do barracão, que distava uma légua da casa da fazenda, sentados em ordem específica onde, em sentido horário, a partir de Osvaldo ocupando a cadeira de espaldar alto e revestido de veludo vermelho, sentar-se-iam Umbelina, Rodolfo, Orlando, Aquino, Quitéria, Urbano e Inácia. Nenhum detalhe mais profundo acompanhava o bilhete.

Os irmãos olharam-se entre atônitos e desapontados. Imediatamente, puseram-se de pé e foram em direção ao barracão, sob sol abrasador. Devo explicar que, naqueles rincões esquecidos, em passadas épocas se usava a medida da légua para exprimir uma distância de aproximadamente 6.600 metros.

Iam ensimesmados e quietos, mas Aquino ruminava o pensamento de que a cadeira de maior espaldar caberia ao irmão caçula, logo o degenerado… Indignava-se. Entre as poucas palavras trocadas pelo caminho, lembravam que descendiam de gente muito trabalhadora, mas que pouco gozava a vida. Sabiam ser filhos de pai muito rico, mas viveram toda a vida modestamente, sem qualquer luxo ou privilégio, e que, agora, na condição de sucessores prestes a tomarem posse da fortuna herdada, enfim aproveitariam a vida com conforto.

Nunca tinham visto o pai em vida dispor mais do que alguns poucos mil-réis da algibeira. Levava consigo sempre dinheiro miúdo, e dispunha de quantias estritamente necessárias para o pagamento de poucos fornecedores e empregados, que mantinha no número mínimo para complementar o árduo trabalho desenvolvido por ele mesmo e pelos filhos, exceto Osvaldo que, após a maioridade, deixou a fazenda e foi ganhar a vida longe dali, tendo voltado apenas agora para buscar o que por direito lhe coubesse.

Dentre os locais, corria a lenda que a fortuna do Coronel era daquela que se guarda sob o colchão. Mas, certamente, o astuto homem não cairia nesta armadilha. No colchão, a inflação, os insetos e até as incontinências noturnas ameaçam qualquer fortuna. Os filhos, estes sim, já desconfiavam que o pai convertesse cada ceitil em metal precioso e outras riquezas mais sólidas nas anuais visitas ao banco da capital federal que Coronel Amâncio realizava ao fim de cada safra. Agora sabiam ser verdade aquilo de que já desconfiavam havia muito tempo.

Esbaforidos, chegaram ao velho barracão que, com os anos, havia sido convertido em depósito de objetos inservíveis. O sol já quase buscava as montanhas do horizonte distante para mais um período de repouso. A porta do barracão foi aberta pela grande chave enferrujada e, em seu interior, móveis, tralhas, quadros, tapetes, ferramentas e tudo mais que havia servido a gerações anteriores que foram senhoras daquelas terras.

Num canto, ao fundo, a mesa redonda referida nas instruções paternas. Bem no centro dela, compondo exótico cenário, um precioso punhal de prata encontrava-se cravado. De costas para a quina da parede, a cadeira de espaldar alto revestido de veludo, tal qual descrita nas linhas preparadas pelo Coronel.

“Seria melhor que eu ocupasse aquela cadeira maior, pois, na posição de irmão mais velho, devo eu exercer a liderança deste momento”, disse Aquino.

“Não seria melhor que atendêssemos às instruções do pai à risca, mano?” obtemperou Quitéria.

“Não desejo que isso se torne uma questão entre nós. Gostaria de resolver o caso o quanto antes, para que eu volte para o Rio” reclamou Osvaldo.

O fato é que, mesmo tendo chegado até ali, todos ainda se encontravam na mais completa escuridão quanto a como se daria o cumprimento do último desejo do pai e a partilha dos bens preciosos de sua herança. Nenhuma instrução complementar se havia dado. Eram apenas eles, a grande mesa redonda guarnecida de toscas cadeiras, exceto aquela de veludo vermelho, e, em volta deles, o barracão atulhado de objetos antigos e empoeirados que quase nada valiam.

Mesmo assim, sentaram-se ainda à roda da mesa, seguindo as regras deixadas, para confabularem um pouco mais, não sem antes terem localizado ali uns lampiões, que acenderam para se precaverem das trevas da noite próxima.
Eram, em sentido horário à volta da mesa, Osvaldo, Umbelina, Rodolfo, Orlando, Aquino, Quitéria, Urbano e Inácia. Ficaram ali, vários minutos em silêncio olhando para o punhal cravado bem no centro da antiga mesa, absortos no silêncio profundo daquela distância e daquela hora. Sem saberem o que fazer, todos com a falta de maiores detalhes e sem melhores ideias além da haverem empreendido aquela expedição.

Por fim, Rodolfo sugeriu:

“Creio que o tesouro esteja enterrado em algum lugar nesta fazenda. Cabe-nos encontrá-lo agora.”

“Mas por onde começaremos? É uma vastidão de terras. São muitas possibilidades” questionou Orlando.

Urbano, o mais calado deles, resolveu exortar:

“Manos, o importante é pôr a mão nesse butim. Isso deve estar escondido sim. E na casa-grande! A ordem para nos reunirmos aqui foi de propósito, nosso pai o fez para zombar de nós, e nos despistar. Vamos reunir uns homens e, a partir de amanhã, a gente procura naquilo tudo. Hemos de encontrar!”

“Qual! Não podemos contar com ninguém. Nós é que devemos fazer a busca, pois se acham algo antes de nós, seremos pilhados” alertou Umbelina, no que os demais concordaram firmemente.

Após retornarem à casa-grande envoltos na espessa bruma da noite, os irmãos, sem ao menos repousarem, já maquinavam onde começariam buscando. Desmontaram toda a casa antiga da fazenda, derrubaram paredes, levantaram tábuas, removeram cada armário e cada arca. Chegaram a arrancar as tábuas do piso para cavar em baixo e os forros do teto para investigar. E nada acharam.

Quem visse a casa após a busca, pensaria que o local havia sido atacado por uma horda selvagem ou ali explodira uma bomba. O mesmo fizeram nas casas dos colonos, no depósito e na capela, tudo com o mesmo decepcionante resultado. Nem a sepultura dos ancestrais, no interior da capela da fazenda, seria poupada se ali não jazesse o cadáver do Coronel, sepultado havia dias.

E desde então a sucessão do Coronel Amâncio está sendo um tendepá entre irmãos, que acabaram se arrependendo de terem destruído tantos objetos da casa procurando valores, e o que puderam recuperar está sendo vendido na bacia das almas para render uns poucos mil cruzeiros para cada um, tendo o ouro e as pedras preciosas sido tomados como pura lenda. E, no entanto, essas riquezas ainda se encontram lá, pela serra do Espinhaço, podendo ser até achadas por olhos mais atentos que dos filhos do Coronel Amâncio, os quais ficaram cada vez mais loucos e mais pobres.

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