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Mesas desiguais

Hipocrisia humana antecipa 2026 com um Natal de barriga vazia

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Autor/Imagem:
José Seabra - Foto Editoria de Artes/IA

O Natal costuma ser vendido como o ápice da fraternidade humana. Luzes piscam, vitrines brilham, palavras como “amor”, “solidariedade” e “renascimento” são repetidas à exaustão. Mas basta afastar o embrulho colorido para que a realidade se imponha com crueza. Porque enquanto alguns se empanturram de excessos, outros seguem com a barriga vazia, invisíveis até mesmo no dia em que Cristo nasceu pobre.

Há algo de profundamente hipócrita nesse ritual anual. Mesas fartas se multiplicam entre os pobres de espírito — aqueles que confundem consumo com generosidade, ostentação com fé. Já os pobres de renda, de carne e osso, seguem do lado de fora da festa, assistindo pela televisão a um Natal que nunca chega às suas casas. A ceia, para eles, continua sendo promessa. E promessa vazia.

Gilberto Gil traduziu essa encenação moral com precisão cirúrgica em Procissão. “Muita gente se arvora a ser Deus”, canta ele, denunciando os salvadores de ocasião que surgem com discursos inflamados e mãos vazias. Prometem vestidos para Maria, roçados para João, futuro para o sertão. Prometem tudo, menos compromisso. Entra ano, sai ano, e nada vem. E o sertão, literal ou metafórico, permanece ao Deus-dará.

O Natal repete esse mesmo teatro. Multiplicam-se campanhas publicitárias sobre empatia, enquanto políticas públicas de combate à fome são desmontadas ou tratadas como favor. Fala-se em caridade, mas evita-se a justiça. Distribui-se sobra, mas nega-se dignidade. O problema não é a ceia farta em si, mas o silêncio confortável diante da desigualdade que a cerca.

Há quem reze diante do presépio sem perceber que o menino representado ali nasceu sem teto, sem conforto e sem privilégios. Se Jesus existe “no firmamento”, como provoca Gil, então “cá na terra isto tem que se acabar”. Não a festa, mas a indiferença. Não a celebração, mas a naturalização da fome como destino.

O Natal revela, com brutal honestidade, quem somos como sociedade. Ele expõe o abismo entre discurso e prática, entre fé e ação, entre o pão repartido e o pão negado. Enquanto houver mesas que transbordam por vaidade e lares vazios por abandono, o espírito natalino seguirá sendo apenas um slogan bonito, lucrativo e profundamente falso.

Talvez o verdadeiro milagre de Natal não seja multiplicar pães, mas dividir responsabilidades. Menos promessas para o próximo ano, menos encenações de bondade. Mais compromisso agora. Porque fome não espera o próximo Natal. E a hipocrisia, essa sim, se repete pontualmente todos os anos.

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José Seabra é CEO fundador de Notibras

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