Curta nossa página


Amâncio, o sisudo

Homem calado se entrega ao próprio abandono

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção de Irene Araújo

Amâncio já não era tão jovem há tempos, desde que deixou de frequentar os primeiros anos na escola. Não que tenha iniciado com mais de seis, mas é que sempre teve aquele jeito de velho, inclusive quando lhe ofereciam alguma guloseima. Cara amarrada, passou por toda a vida acadêmica sem trocar um sorriso com alguém, seja Maria, seja José, seja Maria José, seja José Maria. Tornou-se um sisudo ou, talvez, já tenha nascido desse jeito, pois nem a mãe se lembrava de um momento de satisfação mesmo quando ela o colocava para mamar no peito.

Casou-se como tantos outros, simplesmente por conveniência. Josefina se aproximou, ele não a desejou, mas também não a repeliu. Tiveram quatro filhos por hábito que apenas ela tanto insistia nas noites frias da nossa cidade serrana, ali no alto, logo depois do Colorado. Se dependesse dele, ela estaria intocada, se bem que isso já havia acontecido com outrem. Tanto faz, pois esse seria apenas um detalhe sem importância, como todos os demais aos olhos do Amâncio, que miravam o nada.

As crianças cresceram, formaram seus próprios pares, alguns desfeitos adiante, outros sustentados à custa de perseverança. Netos vieram, até um bisneto, fruto de um namorico às escondidas, ali mesmo naquele jardim da ampla residência do agora sisudo patriarca da família, cada vez mais numerosa. Não sorria, não chorava, não parecia se importar com a própria existência.

Aposentou-se do serviço no banco, onde havia ido e voltado nos últimos quase 50 anos. Seus antigos colegas o consideravam um caladão. Estavam todos certos, pois Amâncio mal proferia uma palavra além das necessárias.

Economista de formação, levava esse hábito até para sua vida social. Nada de termos sem uma função prática. Era simplesmente “Bom dia. O caso é esse…” Por que ele iria entrar em uma esfera além dessa? Para Amâncio, não fazia qualquer sentido falar algo do tipo “Bom dia! Como vai o senhor? Como vai a família? Pois bem, estudei o seu caso profundamente na noite anterior e, então, percebi que o melhor caminho seria…”

Direto! Econômico! Livre dessas amarras que nos prendem à sociedade. Gostava da solidão, pelo menos é o que sempre imaginou. Todavia, começou a sentir saudade do tempo em que estava no ventre da sua mãe e se percebeu só. Pela primeira vez nos seus quase 77 anos, lá estava o Amâncio com esse sentimento de solidão. De tão abandonado se sentiu, que chegou a abandonar-se por completo ao abandono.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.