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Silêncio dos insensatos

Inferno astral de Bolsonaro tem 500 mil fantasmas

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

Definitivamente o Brasil governado pelo presidente Jair Bolsonaro não é o mesmo em que vive a maior parte dos 212 milhões de cidadãos. No país do faz de conta tudo funciona, a pandemia é uma invenção de comunistas e o vírus que já matou 500 mil pessoas de fato é uma gripezinha, pois, conforme o ministro das Comunicações, Fábio Faria, 18 milhões de brasileiros foram curados. Que bom eles terem conseguido sair do outro lado. O que o bajulador oficial finge não saber é que ficar longe do vírus não significa estar imune. Já vivi algumas décadas e jamais fui atropelado por um carro. Mesmo assim, continuo olhando para os dois lados antes de atravessar qualquer rua. Esses 18 milhões podem ter sido curados, mas as sequelas são irreversíveis.

Isso o ministro não mostrou. Faltaram – e faltam – vacinas para todos. Até agora, um ano e três meses após muito negacionismo, a imunização ainda não alcançou 30% da população brasileira. Governos sérios de outros países trabalharam incessantemente para poupar vidas. E conseguiram. Por aqui, permanecem tratando a doença como um resfriado sem importância. Minimizar meio milhão de mortos é o mesmo que comemorar o encontro do quepe do general ao lado dos corpos de soldados abatidos pela tropa inimiga. Também conhecido por genro de Silvio Santos, o ministro usou as redes sociais para ironizar a trágica marca. Para quem gosta de estatística, o deputado federal Fábio Faria sequer se deu ao trabalho de checar no IBGE quantos dos 5.570 municípios do país têm população igual ou superior ao número de vítimas da Covid.

Jornalistas sérios fizeram a pesquisa para ele. São apenas 49. Na matemática popular, isso quer dizer que, isoladamente, 99% das cidades deixariam de existir. Como ocorre em todo o governo, faltou coragem ao titular das Comunicações para encarar a sociedade e dizer que, muito pior do que negar a Covid, foi não saber como tratá-la. Simples assim. Os dados não são para palanques políticos, mas para respostas claras e práticas sobre, por exemplo, o desprezo do governo a que serve com os familiares das vítimas fatais, principalmente com os que não têm recursos nem apoio para diminuir o sofrimento decorrente da doença. Conhecido apenas pela família do homem do baú, Fábio Faria também ficará mudo no dia em que for confrontado com os verdadeiros números da doença.

No dia em que os presidentes e demais integrantes do Legislativo e do Judiciário lamentaram publicamente a consolidação do Brasil na macabra segunda colocação de morte pela Covid, o presidente da República ficou mudo, preferindo divulgar um vídeo em homenagem aos policiais do Distrito Federal e de Goiás, que, armados e equipados para invadir o Iraque, dez dias após o início da operação, ainda não conseguiram capturar um único psicopata. Craque na dissimulação, Bolsonaro optou pela bajulação aos bem-intencionados PMs, esquecendo deliberadamente de 500 mil mortos. Nenhuma palavra de conforto aos familiares. Não precisou.

Tão eloquente como o som de uma bateria de escola de samba no desfile da vitória, o silêncio do capitão só não foi ouvido pelos mocos por conveniência e pelos consumidores de cloroquina. No entanto, para a maioria ecoou desde o Palácio do Planalto como a certeza do dever negacionista cumprido. Silêncio insensato, mas revelador. Objetivando tapar o sol com a peneira e confundir o eleitorado, a Casa Civil do general Luiz Eduardo Ramos divulgou um balanço pífio e mentiroso dos 900 dias da gestão do presidente. A intenção era ofuscar as manifestações a favor do impeachment e contra as políticas sanitária, econômica, ambiental e indigenista do governo. A verdade é que a vontade de mudar do expressivo volume de pessoas nas ruas, praças e avenidas apavorou as autoridades palacianas.

Além de incluir programas da administração Lula – o Bolsa Atleta -, os dados destacaram a preservação de vidas, a retomada da economia e o envio de mais de 110 milhões de doses de vacinas anticovid a todos os estados brasileiros. Divulgado como sucesso de gestão, o tal balanço deve estar se referindo a outro país. Só para exemplificar, será que preservar vidas é insistir com remédios que estimulam mortes? Felizmente, o Brasil e seu povo são maiores do que os presidentes. Uns vão, outros vêm. Não há sucesso possível de esconder meio milhão de cadáveres. No mínimo, o timing do documento da Casa Civil é curioso. Até para apoiadores pareceu demais bater bumbo e rogar luz aos orixás exatamente no dia em que a contabilidade da vida totalizou 500 mil novas almas para assombrar ainda o assombroso inferno astral do capitão. Hoje já são 502 mil fantasmas na cambaleante corrida eleitoreira do presidente.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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