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País da comédia

Inferno de Dante (e o purgatório) ficam no Brasil

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

Poema de viés épico e teológico da literatura italiana e mundial, A Divina Comédia é basicamente a história da conversão de um pecador ao caminho de Deus. De acordo com Débora Fuks, doutora em estudos da cultura, os versos sublinham a necessidade de se seguir o caminho do bem e da ética. Segundo Fuks, o protagonista é o símbolo do ser humano vulgar e representa o cidadão comum, que tem dúvidas, hesita e é tentado pelo mal. Algo a ver com o Brasil de Lula, Dilma, Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Ernesto Araújo, Damares Alves e Ricardo Salles, respectivamente ministros das Relações Exteriores, da Mulher e do Meio Ambiente. Tudo a ver. Resta saber quem é quem na obra escrita pelo italiano Dante Alighieri no século XIV, possivelmente entre 1304 e 1321.

Dividido em três partes (o inferno, o purgatório e o paraíso), cada uma delas contendo 33 cantos, com mais um título de introdução, somando 100 cantos – número que significaria a perfeição da perfeição e 14.233 versos. O mapa das trevas é detalhado em nove círculos. Conforme a descrição de Dante, o inferno ficou profundamente marcado na cultura popular, ajudando a criar a visão de um local relacionado à paixão, ao desejo, pecado e condenação. Didaticamente, é um lugar de desordem e confusão. Exatamente como o Brasil dos últimos vinte e poucos anos. Não vale a pena explorarmos o purgatório e o paraíso, na medida em que não fazemos ideia de quando deixaremos de viver sob o fogo do inferno.

A única certeza é que estamos no centro do abismo, no meio da inquietação, do martírio, da tormenta, do desassossego e da profundeza dos quintos. Filosoficamente, A Divina Comédia sugere que Jerusalém seria o lugar atingido por Lúcifer ao cair das esferas mais superiores e que fez da Terra Santa o Portal do Inferno. O Brasil ficou livre do rótulo, mas certamente teria sido incluído na saga de Dante se o poema fosse escrito hoje. É difícil, mas, como o autor falou de dez céus – sete móveis e três fixos -, devemos aguardar o décimo, que é só luz e é imaterial. No centro dele haveria uma rosa branca, ou seja, Deus rodeado por espíritos bons. Tomara que consigamos chegar perto em futuros longínquos.

Obviamente seria demasiada bajulação e incontida ignorância comparar os principais personagens da obra (o próprio Dante, Virgílio e Beatriz) com as figuras da atual política brasileira. Personificando o próprio homem, Dante sentia um amor platônico por Beatriz, que representa a fé, e admirava profundamente a poética de Virgílio, que pode ser considerado o símbolo da razão. Sem citar referências, não custa lembrar do povo de hoje. Ensaísta, influenciador digital, ideólogo, astrólogo, guru e líder espiritual e ideológico da família do presidente Jair Bolsonaro, o conservador Olavo Pimentel de Carvalho parece ter partido para um retiro religioso forçado.

Digo que parece porque, embora o principal liderado viva longo período de inferno astral, Olavo deixou a cena faz tempo. Sem aparente razão (de motivo), sumiu durante a fase mais ardida da crise sanitária e do complicado imbróglio com o governo chinês. Se pensassem racionalmente e não vivessem com o fígado na boca, pronto para esguichar bílis contra o governo sediado em Pequim, talvez pudéssemos desfrutar hoje de uma relação de intensa parceria, visto que, junto da Rússia e da Índia, a China é nosso principal fornecedor de insumos para produção de vacinas, entre elas a que é capaz de imunizar a população contra a Covid-19.

Momentaneamente – tomara que não passe disso -, estamos sentados na própria inércia e de pires na mão. Apesar do pomposo abre do currículo de Olavo de Carvalho, que também se apresenta como ex-jornalista, sua ausência só foi percebida após o volume de besteiras produzidas na última semana por seus pupilos. O gaúcho Ernesto Henrique Fraga Araújo também poderia ser Virgílio. Jamais. O problema é que, diplomata e escritor, não consegue “fazer” a cabeça do chefe. Prefere dizer amém, sob pena de cada vez mais enfraquecer e isolar o Brasil. A nova ordem é desmentir tudo que mentimos e tentarmos agradar àqueles que difamamos. Tarde demais. O estrago está feito.

Diga-me com quem andas e te direi quem és. O verso é só para lembrar que Araújo chegou ao governo de Bolsonaro por indicação de Olavo de Carvalho, que teria se encantado com artigo publicado em dezembro de 2017 pelo chanceler enaltecendo a política externa do ex-presidente Donald Trump. Baseado em discursos de Trump, o texto destaca a teoria do choque de civilizações, proposta por Samuel Huntington nos anos 90 e que tinham a cultura e a religião como motes dos futuros conflitos da humanidade. Tudo a ver com malucos beleza de extrema-direita e que passam a vida inspirados por teorias conspiratórias.

Para o chanceler, a esquerda “sequestrou” a causa ambiental e a perverteu, criando uma “ideologia da mudança climática”. Ele também promete trabalhar para ajudar o mundo a se libertar do “globalismo”, que, na sua opinião, é uma ideologia anticristã dominada pelo “marxismo cultural”. Meu Deus do céu! Só acreditei porque li. É crível imaginar que posicionamentos como esse tenham saído da cabeça de alguém que até semana passada mantinha publicada a tese de que só uma divindade poderia salvar o Ocidente. Não sei se o artigo foi apagado, mas, na cabeça do diplomata serviçal, “… possivelmente esse ente divino, salvador da civilização ocidental, seria Donald Trump”.

O ministro errou feio. Acredito que, chateado com a comparação, o Pai defenestrou Trump e seu cabelo de fogo sem dó e sem piedade. A ira divina ainda não está completa: falta o impeachment e o consequente expurgo definitivo do ex-presidente norte-americano, guru falsificado do bolsonarismo. Na mesma linha, o extremista Ricardo Salles também não se assemelha em nada ao poeta Virgílio. Promotor do desmonte da governança ambiental durante sua gestão como secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, conforme o Observatório do Clima. Pode não ser a pessoa adequada para a função, mas, desde o início, se alinha com o programa de governo de Bolsonaro. É o que importa.

Sua atuação conservadora vem sendo firmada com posições contrárias a novas demarcações indígenas e metas climáticas e a favor da agricultura comercial em terras de índios e da revisão das regras de regulação ambiental. Para isso, tentou usar a pandemia para passar a boiada. Foi impedido a tempo. Certamente Salles nunca foi apresentado à frase “A natureza é a arte de Deus”, de Dante. Em resumo, Bolsonaro cumprirá seu mandato – tomara que não haja outro – sem um Virgílio para chamar de seu. E quem será a bela e musa Beatriz do presidente da República? Como amor platônico, dificilmente encontrará uma candidata.

Damares Alves pode ser uma mulher de fé, mas, como crítica da chamada “ideologia de gênero” e defensora do governo da igreja – acho que a evangélica -, improvável que se encaixe na máxima do autor italiano sobre a igualdade entre os seres humanos: “O mundo é cego, e tu vens exatamente dele”. A ministra é muito mais conhecida por seus vídeos ou declarações do que por suas ações. Após a posse de Bolsonaro, ela, tentando explicar o início de uma nova era, se popularizou nas redes sociais ao afirmar que, a partir daquele momento, “menino veste azul e menina veste rosa”.

O vídeo viralizou, gerou a criação do movimento “gênero não tem cor” e proporcionou à ministra o que ela faz de melhor: ficar calada. Assim como Dante Alighieri não conseguiu usufruir do amor de Beatriz, o presidente Jair Bolsonaro terá de se conformar com a tese do poeta e polemista inglês John Milton, para quem “é melhor reinar no inferno do que servir no céu”. Prefiro fechar com Dante, que, entre suas célebres frases, cunhou uma que será atualíssima pelos próximos cinco séculos: “A fama que se adquire no mundo não passa de um sopro de vento, que ora vem de uma parte, ora de outra, e assume um nome diferente segundo a direção para onde sopra”.

Não esqueçamos que já tivemos Washington Luís, Epitácio Pessoa, Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek. Hoje, brigamos para saber quem é o menos pior entre José Sarney, Fernando Collor, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro e, quem sabe, João Dória. Volte Dante! Sua Beatriz pode estar escondida no Planalto Central do Brasil. Vamos encontrá-la antes que sejam engolidos pelo 11º céu. Está provado que Bolsonaro precisa de alguma coisa ou de alguém para chamar de seu. Como já confiscou a vacina de João Dória e aguarda Arthur Lira na Câmara, quem sabe não elege o presidente da China, Xi Jinping, o novo amigo, como sua Beatrice (nome verdadeiro de Beatriz). O ministro Pazuello já tem a sua. Ela tem nome, sobrenome e veste capa preta.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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