Cotidiano
Instrumentalização da acusação de abuso sexual em disputas familiares
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A crescente instrumentalização de acusações de abuso sexual em litígios familiares, especialmente em ações de guarda e regulamentação de convivência, exige uma análise jurídica e psicológica cuidadosa, pois envolve o dever estatal de proteção integral à criança e ao adolescente, conforme previsto no artigo 227 da Constituição Federal, e, ao mesmo tempo, a necessidade de assegurar o devido processo legal e a presunção de inocência.
O uso indevido de denúncias de abuso sexual em disputas de guarda tem se tornado um fenômeno reiterado, complexo e preocupante. Em alguns casos, a denúncia se mistura à retórica de litígio e se converte em instrumento de manipulação emocional e jurídica.
Quando a acusação deixa de ser um ato de proteção e passa a ser uma estratégia de vingança, o sistema de Justiça é colocado à prova: deve agir com celeridade para resguardar possíveis vítimas, mas sem incorrer em decisões precipitadas que causem danos irreversíveis à convivência familiar e à reputação dos envolvidos.
A Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e tratados internacionais, como a Convenção sobre os Direitos da Criança, impõem ao Estado o dever de garantir o melhor interesse da criança. No entanto, quando esse dever é deturpado e utilizado como arma de litígio, há uma colisão entre direitos fundamentais: de um lado, o direito à dignidade e à integridade física e psicológica da criança; de outro, o direito do genitor acusado à honra, à imagem e à convivência familiar, assegurados pelos artigos 5º, inciso X, da Constituição, e 19 do ECA.
Nesses casos, pode-se configurar litigância de má-fé (art. 80 do CPC) ou até mesmo denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal), se demonstrado o dolo na fabricação da acusação.
A jurisprudência brasileira tem enfrentado com dificuldade esse dilema, buscando equilibrar o princípio da precaução, essencial em casos de suspeita de abuso, e o respeito ao devido processo legal. O problema é agravado pela ausência de parâmetros técnicos uniformes para a análise psicológica e social dessas situações.
A Psicologia Jurídica oferece importantes ferramentas para compreender esse fenômeno. Pesquisadores, psiquiatras e psicólogos, descrevem casos em que crianças, sob influência de um dos genitores, podem internalizar falsas memórias de abuso, fenômeno conhecido como “falsa memória induzida”. Trata-se de uma forma extrema de alienação parental, que não pode ser ignorada pelo Judiciário por se tratar de clara tortura psicológica.
O impacto psicológico é devastador: a criança sofre com a lealdade dividida e pode desenvolver culpa e ansiedade crônica; o genitor acusado, por sua vez, enfrenta estigmatização social e sofrimento psíquico intenso, frequentemente com prejuízos irreversíveis ao vínculo parental.
Nesses contextos, a perícia psicológica deve ser conduzida com técnica, neutralidade e observância estrita dos protocolos de escuta protegida previstos na Lei nº 13.431/2017. O Conselho Nacional de Justiça tem orientado a utilização de entrevistas forenses estruturadas e a limitação de reentrevistas com a criança, evitando revitimização e vieses de confirmação.
No entanto, a escuta única da criança em casos de alienação parental pode trazer graves prejuízos ao feito, não servindo como prova, vez que a fala nestes casos vem induzida por um dos genitores ou guardiães.
Por isto, a análise interdisciplinar é indispensável: estudos aprofundados tanto psicológicos como sociais devem dialogar entre si para oferecer ao juiz uma visão ampla e contextualizada do caso. A atuação judicial requer prudência e sensibilidade. Medidas cautelares de afastamento do genitor acusado devem ser adotadas apenas diante de indícios concretos e laudos técnicos consistentes, sob pena de se instaurar uma nova forma de violência, a violência institucional, que fere tanto o acusado quanto a criança.
Decisões apressadas, motivadas por comoção ou pressão social, comprometem a credibilidade do sistema de Justiça e podem destruir laços afetivos legítimos.
É urgente a criação de protocolos unificados para avaliação de denúncias de abuso sexual em litígios familiares, garantindo perícias independentes e multiprofissionais. Ao mesmo tempo, o ordenamento jurídico deve aperfeiçoar os mecanismos de responsabilização por falsas acusações, sem desestimular denúncias legítimas de violência.
A ética profissional deve ser o eixo norteador de todas as etapas processuais. O juiz deve agir com base em evidências, e não em presunções; o perito deve manter independência técnica; o advogado deve orientar o cliente dentro dos limites da boa-fé processual.
O sistema de Justiça só será efetivamente protetivo se for capaz de distinguir o uso legítimo do direito de denunciar de sua manipulação para fins de vingança ou controle. A instrumentalização das acusações de abuso sexual em disputas familiares é, portanto, um dos desafios mais complexos do Direito contemporâneo. Ela expõe a fragilidade das relações humanas e as limitações de um sistema jurídico que ainda busca respostas equilibradas entre emoção e razão.
A resposta estatal deve ser técnica, ética e interdisciplinar, pautada na verdade dos fatos e no melhor interesse da criança, não na lógica do litígio. Só assim o Judiciário poderá cumprir sua missão constitucional de proteger sem punir injustamente, e garantir que o sagrado vínculo entre pais e filhos não seja corrompido pela guerra judicial travada em nome do amor.
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Alexandra Ullmann é advogada e psicóloga