Curta nossa página


Velho feio (Versão II)

Intrigado, decidiu marcar uma consulta com o dentista

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

As presas surgiram primeiro. Eram curvas, grandes e amareladas, como as de um lobo ou outra fera. E afiadas, tiraram sangue de um dedo quando as tocou. Osíris as percebeu quando escovava os dentes, diante do espelho. E notou, intrigado, que, ao tocá-las sem olhar a imagem, não havia nada: as presas sumiam e a gengiva estava perfeita, macia ao tato e não dilacerada, como via no reflexo.

Intrigado, decidiu marcar uma consulta com o dentista. Antes do dia marcado, porém, surgiram as garras, de unhas enormes e sujas, como se ele tivesse escavado a terra com as mãos. Viu-as pelo espelho, e mais uma vez, ao olhar direto para baixo, não viu nada, somente as mãos enrugadas e macias de um idoso que nunca empunhara uma enxada, que jamais realizara um dia de trabalho braçal em sua vida.

Apareceram em seguida as placas escamosas, a lhe cobrir o dorso. Por fim, vieram as garras dos pés, enormes, mais imundas ainda que as superiores. Tudo somado, ele parecia uma versão bípede de um dragão-de-komodo, algo saído dos sonhos mais delirantes de um geneticista enlouquecido.

A essa altura apavorado, ele se perguntou que diabo estava acontecendo. Seria uma atualização, para a vida real, de O retrato de Dorian Gray? No romance de Oscar Wilde, o personagem conserva toda a juventude e poder de sedução, enquanto um retrato seu vai se transformando, ficando monstruoso, espelhando seus vícios e podridão moral. Mas Osíris sabia que não era um pecador da pesada; só cometia os pecadilhos de tanto santo dia, nada que o condenasse ao inferno – ou que o tornasse fisicamente um monstro. Afinal, chegou à conclusão de que se tratava de algo inevitável, uma espécie de doença autoimune, não do corpo, e sim do psiquismo.

“Pelo menos, só vejo o reflexo do monstro”, pensou. “E só eu vejo, os outros nada percebem de estranho, já testei”.

Uma tarde, Osíris caminhava pela rua, tomando o cuidado de não observar sua imagem refletida no vidro de uma vitrine ou em qualquer superfície semelhante. De repente, uma menininha, junto à mãe, apontou para ele e berrou:

– Maiê, olha o velho feio!!!

“Agora ferrou, crianças conseguem me ver”, pensou, amargurado. “E crianças até que idade? A menina deve ter uns 5 anos; um garoto de 10 pode me ver? E um pré-adolescente de 12? E um de 12 ou 13?”

Afastou-se aos tropeções, enquanto a mãe dava um beliscão na filha por ter ofendido aquele senhor, tão distinto…

“Adolescentes andam em bandos; são pequenos lobos que caçam em alcateia”, prosseguiu Osíris, enquanto entrava em casa. “Se um deles me vir, todos vão me apedrejar ou coisa pior. Mesma coisa, se o irmão mais novo de um deles me vir e contar o que avistou. Não vai dar pra viver assim, fugindo das crianças o tempo todo”.

Fechou bem todas as janelas, ligou o forno e esperou o sono final. Ou a explosão, para ele tanto fazia.

“Só espero que encontrem o cadáver de um idoso de boa aparência”, ainda pensou, antes de adormecer. “E não a carcaça de um dragão-de-komodo sobre dois pés, algo saído dos sonhos mais delirantes de um geneticista enlouquecido!”

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.