Amizade
Ismália, a mula do meu avô
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Não sei se já te falei da mula do meu avô. Quero deixar bem claro que vovô não era uma mula, apesar de certos rompantes, a maioria por conta de desavenças com os irmãos, já que, com o pai e, especialmente com a mãe, não tinha coragem de levantar a voz. Talvez seja por isso que vovó nunca tenha revelado qualquer briga que, porventura, tenha tido trancada com o marido no quarto.
Então, quer dizer que o seu Tenório era homem de fácil trato? Bem, enquanto sóbrio, diria que sim. Todavia, quando se deixava levar por uma dose de cachaça… Ih, a partir daí, a coisa desandava dum jeito, que não tinha santo que segurasse o ímpeto do vovô. Mas não pense você que era coisa de valentia, pois a única contenda que travou durante seus 78 anos foi contra a miséria. Venceu, não de lavada, mas por um placar tão apertado, que, aos olhos de algum desavisado, poderia imaginar que a derrota havia sido acachapante.
Ismália. Pois era esse o improvável nome da mula do meu avô. Nasceu de enlace breve entre um jumento, o Lúcio, e a égua Laurentina, nome logo encurtado para Laura. Breve porque não passou de um mês, já que o pobre Lúcio, inquieto como ele só, era afeito a pular cercas e, numa dessas, deu de cara com um zeloso sitiante, proprietário de caríssima mangalarga tordilha. Furioso, o sujeito descarregou a garrucha antes que o Don Juan dos equídeos pudesse consumar o ato.
Órfã de pai, parece que Ismália não cresceu traumatizada, ainda mais porque a doce Laura demonstrou ser excelente mãe. Quando chegou a idade apropriada, começou a receber ensinamentos que a tornaram a melhor montaria da região. De tão afamada, teve fazendeiro endinheirado que ofereceu pequena fortuna. No entanto, o então jovem Tenório declinou da possibilidade de se desfazer do incrível animal, que, inclusive, passou a fazer parte da família, com direito até a duas graúdas cenouras logo nas primeiras horas do dia, além de um punhado de milho no final da tarde.
Tais mimos eram de bom alvitre, pois Ismália fazia trabalho de três homens, carregava meu avô no lombo para cima e para baixo, sem contar as vezes que o livrou da peçonha de jararacas e cascavéis que se embrenhavam em moitas à espreita de presa. Não que vovô fosse o alvo de tais serpentes, mas as pobres criaturas rastejantes encaravam aquele ser bípede como ameaça. E com razão.
Ismália, quando percebia o perigo, zurrava e dava meia-volta. Nas primeiras vezes, Tenório embirrou e quis forçar a mula a prosseguir, até que quase foi derrubado e, ao se preparar para ralhar com a companheira, percebeu uma enorme jararaca pronta para o bote. A partir de então, percebeu que a danada detinha a sapiência dos prudentes e, por isso, nunca mais teimou com ela.
Que cavalo sabe o caminho de casa, sei disso desde a mais tenra idade. Entretanto, Ismália, até mesmo por conta de sua condição de mula, era dona de inteligência mais arguta. Tanto é que, quando Tenório exagerava na bebida lá na bodega do Jurandir, bastava o homem montar na mula ou, dependendo da situação, alguém o colocasse sobre ela, para que fosse levado de volta ao sítio da família. Tudo dentro dos conformes, se não fosse por um porém. É que Ismália, certamente para defender a reputação do Tenório, passava por dentro do riacho, cuja água era tão gélida, que era capaz de despertar até defunto de três dias.
O bebum chegava encharcado ao lar, mas tão desperto, que ninguém suspeitava que Tenório havia bebido. Vá lá, que tivesse bebido além da conta. No máximo, era como se o gajo tivesse ingerido a dose que todo filho de Deus merece após um dia inteiro no cabo de uma enxada.
Ismália chegou aos 42 anos, quando Tenório e Carlota já contavam com três netos, sendo eu uma delas. Há muito aposentada, viveu uma vida inteira dedicada ao meu avô. E a nossa família reconhece tamanha devoção. Tanto é que todos nós guardamos com carinho as suas fotografias, cada vez mais apagadas, mas jamais esquecidas.
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