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O Lado B da Literatura

João do Rio, cronista célebre, tem seu Lado B

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Autor/Imagem:
Cassiano Condé - Reprodução da Internet

Em chamada de vídeo com o Edu Martínez, nosso editor-executivo, ele me dizia que uma das autoras retratadas aqui na coluna havia feito uma pequena reclamação. Eu escrevi, em seu perfil, uma frase que ela considerou “ácida”.

Defendi-me com meu amigo e lembrei que o Daniel Marchi, nosso amável poeta, já dissera que eu pegava leve demais no Lado B. Ora, se o B é de “brando”, a culpa não é minha, mas de nossos homenageados. Sim, porque o autor ou autora que aparece no Lado B da Literatura é, em realidade, um laureado, pois, expondo o lado mais humano deles, procuro aproximar o público fiel de seus autores preferidos.

Os escritores que povoam as páginas de Notibras têm a vida muito limpa. Eu bem queria ir mais fundo, achar-lhes, no âmago, o bas-fond, aquilo que eles nunca contaram em lugar nenhum. Sem lhes faltar com o respeito, é óbvio.

Só que são todos gente boa demais, uma gente escorreita. Quantos mais conheço, mais fico fã. E, sendo fã, olho para eles como se fossem monumentos sagrados da literatura nacional – difícil colocar uma vaca sagrada das letras em cheque, contra a parede, dizer-lhe aquelas do fim.

Por isso, resolvi tirar uma folga dos escritores vivos e me voltar um pouco para aqueles que já não estão entre nós, exceto pela força de seus escritos.

O homenageado da vez é João do Rio.

Nascido João Paulo Alberto Coelho Barreto, no Rio de Janeiro, então município neutro da corte, em 5 de agosto de 1881, João do Rio, pseudônimo que o consagrou, foi o primeiro grande cronista da cidade que ainda não era chamada de maravilhosa. Além disso, desenvolveu atividade jornalística, de tradução, escreveu romance e teatro.

Filho de um professor do Colégio Pedro II, começou no jornalismo ainda com 17 anos, celebrizando-se, no limiar do século 20, com uma série de reportagens-crônicas que fez para a Gazeta de Notícias sobre “As religiões do Rio”, compiladas em livro em 1904.

Fico aqui pensando se a crônica da vida social que ele fazia teria lugar no jornalismo de hoje, e creio que, infelizmente, a resposta é não.

O texto dele, nos dias atuais, precisaria ser mais fácil, mais palatável para o público em geral, e não descambar para o puramente literário, como acontecia demais. Uma linguagem meio empolada, que não é mais apreciada, embora ainda tenha seus cultores.

O século 21 exige que os escritores cheguem mais direto ao ponto.

Enquanto escrevo, tenho aqui em mãos, retirado de uma parte pouco utilizada da minha estante, um volume chamado “Rio de Janeiro em Prosa e Verso”, compilado por ninguém menos que Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ocasião do 4.º Centenário do Rio, em 1965. É uma coletânea interessantíssima, com textos escritos entre os séculos 16 e 20 sobre a cidade-mar-montanha-céu-azul que é o purgatório da beleza e do caos. João do Rio, por óbvio, não poderia faltar. Tenho, também, a célebre antologia de nosso retratado feita por Luis Martins, que lhe traz uma curta, mas detalhada biografia.

Mergulhar nos parágrafos de João do Rio é participar da realidade de uma cidade – e um mundo – que não existem mais. Fascinante e, ao mesmo tempo, assustador, como as barreiras sociais de então se mostram tão demarcadas, sem poupar os integrantes das camadas mais populares de preconceitos e estigmas. No entanto, se compararmos os textos de João do Rio aos seus contemporâneos, podemos ver que ele não exagerava nesses traços da sociedade urbana daquele tempo.

Melhor podemos ver o que afirmo acima nos textos “Velhos Cocheiros” e “Os Livres Acampamentos da Miséria”.

Na ficção, João do Rio escreveu textos memoráveis. O melhor deles, na opinião de muitos, da qual partilho, é “O bebê de tarlatana rosa”. Que história lírica e, ao mesmo tempo, cruel! Será pura imaginação, ou alguma foliã de carnaval pode ser encontrada naquela situação exasperante? Mais não digo para não estragar a surpresa dos que forem ler o conto pela primeira vez. Foi considerado um dos melhores contos brasileiros de todos os tempos.

Perceba, leitor, que acabo por me levar pela admiração que tenho pelo autor João do Rio – igualmente à que nutro por qualquer escritor de boa literatura – e amenizo-lhe o perfil. Onde está o lado B do homem, você poderá me perguntar.

Pois bem, aqui afirmo que, se como autor, João do Rio pagou pela novidade que representava, como pessoa humana também foi controverso.

Não era uma unanimidade nos círculos sociais pelos quais andava. Por alguns, foi considerado grosseiro e inconveniente. Relata-nos Luis Martins o que Antônio Torres disse sobre ele: “foi uma das criaturas mais vis, um dos caracteres mais baixos, uma das larvas mais nojentas que eu tenho conhecido”. Ribeiro Couto classificava-o como um “senhor quase desagradável”.

Mas, continua Martins, teve admiradores e amigos fiéis, dentre os quais o grande Gilberto Amado, que viria a ser o reconhecido diplomata brasileiro, cujas “afetações e pacholices, tão naturais em João do Rio”, faziam sorrir, não passando de “histrionices de artista que se exibe para receber aplausos”, resultantes de sua “genuinidade e da sua ingenuidade, inapto para compreender a maldade humana”, que o surpreendia como um fenômeno absurdo.

Concluo que, tivesse detratores ou amigos fiéis, muitos foram eclipsados pela fama perene de João do Rio, que continua por aí, vivo, nos meios mais suspeitos e menos canônicos da sociedade carioca, parecendo que em qualquer esticada boêmia ou passeio noturno iremos encontrá-lo.

Afinal, João do Rio segue, e permanece como representante de uma raça quase extinta de repórteres e cronistas.

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Cassiano Condé, 81, gaúcho, deixou de teclar reportagens nas redações por onde passou. Agora finca os pés nas areias da Praia do Cassino, em Rio Grande, onde extrai pérolas que se transformam em crônicas.

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