O doutor
José Antônio, Gertrudes e Madá
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José Antônio, mudo para assuntos que não lhe diziam respeito, possuía sobrenome apropriado: Calado. Não que fosse sempre embatucado, pois sabia e precisava falar, ainda mais para saber sobre o problema de saúde de suas pacientes. Médico? Bem, de certa forma, sim.
— Doutor, o senhor acha que ela vai ficar boa?
— Sim. Pode ficar tranquila, Maria Alice, que a Gertrudes vai ficar novinha em folha.
— Hoje?
— No final da tarde.
— O senhor promete?
— Prometo.
— Tá vendo, papai? O doutor vai cuidar da Gertrudes.
— Sim. Mas agora vamos? O doutor precisa arrumar o braço da Gertrudes. Mais tarde a gente volta pra buscá-la.
Assim que o homem e a menina deram as costas, José Antônio colocou a boneca sobre a mesa de trabalho. Avaliou por um instante e constatou que, após reduzir aquela fratura, bastaria colocar um pouco de cola para que a Gertrudes pudesse retornar para casa nos braços da pequena Maria Alice.
Enquanto o cirurgião fazia os procedimentos necessários, ele sorriu. Acabara de se recordar como tudo aquilo havia começado.
Madalena, a Madá, era a Gertrudes de Sandra, sua irmã caçula. Por falta de cuidado, desventura ou acaso, Madá foi mastigada não se sabe quantas vezes pela Cuca. Ainda filhote, a terrier não sabia que a boneca era da família.
Por sorte, José Antônio, então com 10, 12 anos, conseguiu salvar a parenta a tempo. O estrago foi grande, mas não foi necessário sepultar a pobre da Madá. E ela sobreviveu por anos, até que, finalmente, a Sandra começar a ter outros interesses.
Madá não parou na lata do lixo por pouco. Mais uma vez, foi salva pelo José Antônio, que a mantém até hoje. A Sandra, quando visita o irmão, acha graça.
— Por que você não joga essa boneca fora?
— Nunca.
— Por quê?
— Não desistimos da família.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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