Espreita
Juarez, em sua última viagem, conseguira obter a grande estrela de suas coleções
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Juarez dizia-se antropólogo, amador, mas antropólogo. Na verdade, porém, era um colecionador. Em sua casa, nas paredes de todos os aposentos, à exceção do banheiro e da garagem, estavam penduradas máscaras provenientes de culturas nativas dos mais diversos países.
Não de todos. Faltavam em seu acervo criações dos povos da Oceania, da Ásia (da Mongólia ao sudeste do continente) e da América do Norte e Central, dos maias e astecas aos grupos indígenas do Canadá. Sem falar nas máscaras africanas, que, no início do século XX, haviam encantado Picasso e outros artistas, contribuindo para uma revolução nas artes plásticas da Europa e, em seguida, do todo o planeta. Todas essas, ele só conhecia por ilustrações e documentários – e passava horas assistindo a eles, ou folheando cuidadosa e amorosamente revistas especializadas, cheias de imagens magníficas. Ele costumava dizer, meio brincando, meio a sério, que era um aficionado pelas culturas mascaristas, presentes em todos os tempos, em todas as latitudes. O Ocidente era mascarista, desde as máscaras rituais e de teatro da Grécia antiga, passando pelas do Carnaval, formalmente ligado ao calendário católico de celebrações. Mais que isso, na sua opinião, o mundo inteiro era mascarista.
O terreno de caça de Juarez era a América do Sul. Visitara muitos grupos indígenas da Amazônia e dos Andes, em busca de exemplares para sua coleção. Nessas expedições, sua sensibilidade fora pouco a pouco se aguçando, e aprendera a diferenciar objetos belos ou grotescos, criados para turistas, de outros talvez mais rudes, executados por mãos menos hábeis, porém recobertos por uma espécie de pátina psíquica, aplicada pelas preces e rituais de sucessivas gerações de adoradores temerosos e reverentes.
Em sua última incursão à região andina, conseguira obter aquela que seria a grande estrela de suas coleções. Era uma máscara sem os traços grotescos e ferozes associados a deuses ou demônios das montanhas. As feições tranquilas evidenciavam uma nobre altivez que ele, até então, só vislumbrara em esculturas greco-romanas. O rosto, esculpido em madeira, era quase apolíneo – o rosto de um Apolo sem paixões, na versão que nos foi deixada do deus pela antiguidade clássica. Apenas um aspecto a trazia da tranquilidade do Olimpo para o universo tempestuoso em que estavam mergulhados seus adoradores: junto às comissuras dos lábios havia manchas avermelhadas semelhantes a ferrugem, esmaecidas pelos séculos. “Provavelmente manchas de sangue”, pensou Juarez. “Algum sacerdote deve tê-la ‘alimentado’ para torná-la menos altiva, menos distante dos humanos”. Mas também surgiu, em contraponto, um pensamento inquietante, logo descartado: “ou para apaziguá-la, conservá-la temporariamente adormecida”.
Foi necessário um bom dinheiro para que o xamã e o chefe da aldeia fechassem os olhos para o desaparecimento da relíquia. “Mas a verdade é que eles poderiam ter conseguido um preço muito mais alto”, disse a si mesmo o colecionador. “Foi como se tivessem receio de pedir demais e que eu desistisse da compra. Como se estivessem ansiosos por livrar-se dela”, concluiu.
De volta ao Brasil, em sua casa, sentado em sua poltrona predileta, Juarez contemplava em silêncio e acariciava a “máscara tranquila”, como a designou. Seus dedos podiam sentir a dimensão do sagrado no objeto, mas havia outra sensação associada à máscara, uma sensação de expectativa. “É como se ela estivesse à espreita do que vai acontecer. Ou daquilo que sua presença vai precipitar”, concluiu, com um tremor de inquietação.
Dois dias depois, alguns amigos de Juarez, preocupados com a falta de notícias – algo que raríssimas vezes acontecera – o encontravam morto na sala, a garganta dilacerada. Caída no chão, perto da poltrona, estava uma máscara andina. Nem um pingo de tranquila altivez ou comedimento em suas feições; ao contrário, os traços eram mais grotescos, mais ferozes e assustadores do que os de qualquer outra máscara pendurada nas paredes. E a boca, de presas enormes, era (estava) rubra.