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Pandepi

Juca escapa das chamas do inferno graças à algaravia

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Juca era apaixonado por palavras. Amava algumas pela musicalidade, “enleio” é um bom exemplo, outras pela expressividade, tipo “adoidado” e a esmagadora maioria das gírias, fruto da criatividade anônima tupiniquim. Mas o que mais curtia era acompanhar a brasileirização de termos estrangeiros, que chegavam agasalhadinhos de países frios e logo, logo estavam na praia, de sandália havaiana e tomando água de coco.

O palavrófilo agradecia aos hermanos, entre outros vocábulos, por cáften – que ficou mais bruto, mais condizente com a exploração de mulheres, como cafetão –, por sua versão mais refinada, cafiolo, e também por otário, mina, grana e bacán, que virou bacana. Fascinava-o ver um termo usado para senhores ricos, coronéis que sustentavam amantes, ser usado no feminino para homens, mulheres e todo tipo de coisas e situações. Mas seu enleio maior ia para a cantiga de roda francesa, na qual “je m’em vais” (vou-me embora) e “je m’em vais d’ici” (vou-me embora daqui) se tornaram “de marré” e “de marré de si”.

Só que havia outra aliteração que o incomodava desde a infância, quando via sua irmã mais nova e as amigas Lucinha e Mariinha em um jogo de palmas, ao som de palavras sem sentido. Eram dois versos, soavam como “Panderoletapandepipetitapiruge” e “Panderoletapandepipetitapiti”. Por algum motivo, a memória de Juca os gravou pelos séculos dos séculos.

Mais tarde, quando teve aulas de francês no Ensino Fundamental, ele investigou aquela algaravia. “Panderoleta” devia ser pain de roulette, pão redondo, e “pandepi” era provavelmente pain d’épices, com canela e outras especiarias. O restante do verso soava como “petit tapis rouge”, pequeno tapete vermelho, e “petitapiti”, talvez fosse pequeno tapete, com um “ti” de rabinho para dar rima. Mas qual o sentido da coisa, se é que havia, e o que um tapetinho vermelho estava fazendo entre pães, não tinha a menor ideia. Chegou a pensar em pedir auxílio a suas amigas francesas, perguntar se conheciam alguma cantiga de roda com versos que soassem, mesmo remotamente, como aquela barbaridade, mas desistiu, iam achar que ele estava chapado ou doidinho de pedra.

A outra paixão de Juca era a birita. Ele e os amigos bebiam pesado, cervejas sendo perseguidas por destilados – uísque, vodca ou cachaça, qualquer prazer os divertia. Com a idade, a cervejinha reinou soberana, os destilados receberam uma digna aposentadoria, mas de vez em quando ainda saudavam o público e pediam passagem. Foi provavelmente o álcool que levou bem cedo o amante de palavras para a cova, aos 67 anos, vítima de um infarte fulminante. Ou foi uma predisposição genética, vai saber, o pai dele também morrera cedo, infartado.

A alminha de Juca não tinha ilusões de ir pro céu. Ele tomou seu lugar em uma enorme fila, que conduzia a um diabão. O demônio anunciou, com voz poderosa:

– Última chance de escapar dos castigos eternos! Direi o início de um verso, cada um terá dois segundos para dizer a continuação. Se acertar sobe, vai tocar harpinha lá em cima; só que até hoje ninguém subiu – e deu uma risada maligna.

Apavorado, Juca viu cada alma na sua frente chegar junto ao diabão. Este falava algo inaudível, recebia uma resposta em voz sumida, soltava uma gargalhada demoníaca e dava um pontapé na bunda da pobrezinha, lançando-a nas profundas do inferno.

Afinal, chegou a vez de Juca. O diabão olhou-o, abriu um sorriso maligno e mandou bala.

– Panderoleta!

– Pandepi! – respondeu Juca de bate pronto.

O demônio o mirou, incrédulo. Em seguida, soltou um uivo de raiva e explodiu:

– Talquei, fideumaégua. Vai usar camisolinha na casa do chapéu!!!

(Mentira minha, o coisa ruim falou uma porrada de palavrões cabeludos, mas sou um escritor de bons costumes, parafraseei pra não ferir sensibilidades e ouvidos delicados.)

Depois da chuva de impropérios, o malvadeza deu-lhe um pontapé na bunda que o lançou para cima. Enquanto ascendia para conhecer Papai do Céu, o rabo doendo adoidado devido ao chute, Juca teve tempo de agradecer fervorosamente a santa Mariinha, santa Lucinha e santa irmã-mais-nova, cuja algaravia o havia livrado das chamas eternas.

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