Queimando as pestanas
Língua de português tem menos veneno do que a do menos ordeiro brasileiro
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País em que todos dizem que são ricos, mas povoado por gente que todos sabem que é pobre, Portugal tem sido o destino preferido de brasileiros. São os patrícios que se acham ricos ou que querem morar ou se reciclar idiomaticamente mais próximo dos mares desbravados por Cabral e Vasco da Gama. Lá, na terra de Camões e de Bocage, o idioma é o mesmo, mas fica nisso. Muitas das palavras e expressões faladas, radiofonizadas e televisadas têm outro significado nos 8,51 mil km² do Brasil. Além dos cabelos aportuguesadamente lisos, do cultivo do bigode, da relativa fartura de euros e da herança escravagista, nada parecido com os brazucas.
Na verdade, quanta diferença entre nós e eles. Ainda bem puto (criança), aprendi o que sei sobre as nuances do português de lá e de cá com meu avô Aristarco Pederneira. Portuga de Trás os Montes, ele me ensinou, de cima para baixo e de um lado para o outro, tudo a respeito do uso correto da língua. Hoje a uso eretamente e sem salivar. As aulas foram ministradas pouco antes de vovô esticar o pernil ou dar o peido mestre, isto é, antes de partir para o reino dos céus. Coitado do velho. Partiu porque, cansado até dormindo, dizia aos familiares que já não se aguentava nas canetas.
Eis a razão pela qual vivo o hoje intensamente. As preocupações com o amanhã ficam para depois de amanhã. Como se diz em Portugal, estou nas tintas. No Brasil, os patrícios diriam que não estão nem aí para nada. Aliás, do jeito que vamos de que adianta queimar as pestanas se, no fim do mês, o salário só dá para os alfinetes, ou seja, para viver. É o período em que a maioria do trabalhador está sem recursos ou com uma gata pelo rabo. Algo como um pentelho seco de velho, expressão similar a não valer nada.
Dizem que a língua do ser humano mata mais do que cobra cascavel. Como estamos a ver, não em Portugal. Os lusitanos não têm porcaria na cabeça como nós, brazucas. Palavras venenosas e de calão baixo para nós são usuais para eles. Por exemplo, pica nada mais é do que alguma coisa produzida com muita força ou uma singular injeção. E o que dizer da punheta, um prato típico feito de bacalhau. No Brasil, é coisa feia e proibitiva para meninos de 5 a 80 anos incompletos. Só vale se for escondida e de frente para uma foto de corpo inteiro do Thammy Miranda ainda menina. Diriam os mais sábios que a língua do português tem menos veneno do que a do brasileiro.
Consumimos diariamente grelos, porras e cacetes, mas nos avermelhamos quando alguém diz que degustou dois litros de rola. O fôlego dos senhores, senhoras e das beatas papais só volta ao normal quando um craque da língua informa que grelo é couve, porras é churro, cacete é pão e rola é vinho. Quanta mente suja há por aqui. Meu Deus! Imaginem os brasileiros de séculos passados ouvindo Pedro Álvares Cabral confidenciar a Vasco da Gama e a Pero Vaz de Caminha que quem navega sem parar e sem enjoar acaba dando em alto mar. Se vivos fossem certamente morreriam quando ouvissem dizer que o grande, o enorme Kid Bengala tinha três pernas, mas não era manco.
Pior ainda para os velhinhos seria a informação de que não há no mercado comum durex para o tamanho de Kid Bengala. Para quem não sabe, no Brasil o durex se refere à fita adesiva, usada para lacrar embalagens e fixação provisória de peças. Em Portugal, durex serve para embalar pintos em estado rígido, sólido e inflexível. Fiquemos por aqui antes que me mandem meter uma lança em África, que quer dizer realizar algo muito difícil. Em se tratando de África, nada pior do que assistir pela enésima vez o filme O Escudo Branco. Tô fora. Não aguento nem mais o escudo dos negros.
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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras