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Poemas e crônicas

Lucas queria ser publicado

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Aos 34 anos, era um escritor iniciante e inundava com seus contos as redes sociais. Obtinha um relativo reconhecimento, o que o animava a ir em frente, mas nada que lhe assegurasse a glória literária. Pior, a edição de seu primeiro livro permanecia um sonho distante.

– Vai ver, as editoras de ficção se interessam apenas por romances, não pelos contos de um autor iniciante – repetia sempre a si mesmo, amargurado.

Real ou imaginário, o sentimento de rejeição levou Lucas a entregar-se às garras do ciúme, o monstro de olhos verdes de que falava Shakespeare. Parafraseando o Bardo, e contrariando uma bela canção portuguesa, afirmava sempre:

– O ciúme é um monstro de olhos castanhos. Os meus.

O objeto de seu ciúme era no mínimo esdrúxulo: os poetas e cronistas, seus confrades no universo das letras. Ele invejava, especificamente, a facilidade com que descolavam temas para seus textos.

– Cronistas, bah! (Lucas era gaúcho.) Veem uma mosca voar e já escrevem um textinho… Eu, quando avisto uma mosca em meu apartamento, trato de espantá-la ou de matá-la, tanto faz; e então uma frasezinha ouvida na adolescência corre sempre pro meu pensamento: “Um trilhão de moscas não podem estar erradas, coma bosta!”

O ciúme dos poetas era igualmente grande e igualmente irracional.

– Poetas, bah! Num dia cortam os pulsos, no outro se enforcam, num terceiro renascem, fênices literárias… Perdem e ganham amores, voam às estrelas, descem aos infernos… Sempre na primeira pessoa. Já, eu nos meus contos, quando mato um personagem, desisto dele de vez.

Certo dia, depois de ser atormentado por essas reflexões sombrias, Lucas teve a ideia de se diversificar. Ameba literária, se dividiria, criaria um perfil falso em seus grupos e enveredaria pelos amenos campos de caça dos poetas e cronistas, deixando os agrestes terrenos dos contistas.

O primeiro passo consistiu em escolher um nome. De preferência maravilha. Optou por Enzo Gabriel; achava Lucas dos Santos, escolhido pelos pais e com que assinava seus contos, muito pouco literário. Em seguida, o Enzo recém-nascido foi para o perfil recém-criado e ficou à espera de inspiração. E esta não veio, abriu as asinhas e voou para bem longe dele.

Desesperado, Enzo/Lucas lembrou de um poemeto que havia cometido na adolescência, na flor dos 14 aninhos, e mandou bala:

Mundo só meu

Eu quero um mundo só meu/Mundo bom, de alegria/Mundo sem gente/Mundo sem maldade/Aonde eu leve meus amigos e diga/”Vejam, este é meu mundo/Aqui é que eu fico/Aqui é que eu vivo/Aqui e só meu.”/ E eles sentirão inveja,/Raiva, tudo de mim/Porque me julgarão feliz./Eu, feliz…/Eles estão loucos,/Eu estou louco,/Todo mundo está louco,/Mas eu quero um mundo só meu.

Como sempre fazia, releu criticamente o texto e balançou a cabeça, pesaroso: comida de mosca, quer dizer, uma josta (ou nem tanto, era parcial com suas criações). Afinal, decidiu apagar, mas, desajeitado na última, teclou em postar e imortalizou a coisa.

Exasperado, pensou em enterrar sem armas e sem bagagens o Enzo Gabriel, mas então percebeu que o narrar de tudo o que fizera dava o maior samba. Ou dava crônica. Ou dava conto, tanto fazia. Escreveu rapidinho tudo em seu perfil de Lucas dos Santos e postou. Mais um conto/crônica, mais um pequeno favor das musas. A vida é bela.

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