Curta nossa página


Derrite, relator da tempestade

Lula enfrenta combate ao crime organizado e à guerra ideológica

Publicado

Autor/Imagem:
Marta Nobre - Foto Lula Marques

No início da madrugada deste sábado, 8, quando cumpria plantão na Redação, recebi um telefonema de um interlocutor palaciano, com quem costumo trocar ideias para sustentar ou descartar informações de outras fontes. A conversa foi em tom reflexivo. A conclusão, mútua, é a de que o Brasil parece assistir, mais uma vez, à metamorfose de um projeto de Estado em instrumento de disputa ideológica.

O tema das confidências foi o anúncio do deputado Guilherme Derrite (PP-SP) como relator do Marco Legal do Combate ao Crime Organizado, que nos pareceu ser não apenas um ato administrativo da Câmara dos Deputados, mas um gesto político, e dos mais simbólicos, que recoloca a questão da segurança pública sob o prisma da polarização.

O texto original, concebido pelo Palácio do Planalto após a tragédia no Rio de Janeiro que deixou 121 mortos, busca estruturar uma política de Estado contra o crime organizado, com foco em inteligência, articulação institucional e novas ferramentas de investigação. Mas a escolha de um relator alinhado à direita mais punitivista e sobretudo ideologicamente identificado com a lógica do confronto, muda o eixo da discussão.

Derrite, até dias atrás secretário de Segurança Pública de São Paulo, retorna à Câmara trazendo na bagagem o discurso que marcou sua gestão: o da força como solução, o da bala como argumento. E é sob essa ótica que ele anuncia um substitutivo ao projeto do Palácio do Planalto, prometendo “ajustes essenciais” que, na prática, transformam o marco legal em um código de guerra.

O endurecimento das penas, a proibição de indulto, a ampliação do tempo de cumprimento em regime fechado, como pretende o parlamentar paulista, parece apontar para um Estado cada vez mais voltado ao castigo do que à prevenção. Até aqui, seria uma divergência de método. Mas o ponto sensível e politicamente explosivo é a fronteira que Derrite se aproxima de cruzar: a equiparação entre o crime organizado e o terrorismo.

Essa linha tênue, que o Governo Lula 3 evitou deliberadamente, pode ser redesenhada pelo novo relator. E, se isso ocorrer, o país mergulhará no perigoso terreno da criminalização política. A definição de quem é “terrorista” passa a ser, então, não um conceito jurídico, mas uma escolha ideológica. E isso acontece justamente no momento em que a história recente do Brasil — e do mundo — mostra que tal brecha pode transformar adversários em inimigos de Estado.

O governo Lula sentiu o golpe. A escolha de Derrite, feita pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (PP), soou como provocação direta. O Planalto, que buscava consenso técnico, vê seu projeto prioritário nas mãos de um aliado do governador Tarcísio de Freitas, expoente da direita brasileira. O líder do PT, Lindbergh Farias, falou, não sem razão, em “desrespeito”. E o recado de Motta, para quem está acostumado a acompanhar o que se fala nos corredores do Poder,  é claro: o Congresso quer protagonizar o debate sobre segurança, mesmo que isso custe a essência da proposta original.

No pano de fundo, há mais do que divergências partidárias. Há o risco de o Brasil redefinir os limites da liberdade em nome da segurança. Derrite fala em “fortalecer o combate ao crime”, mas sua lógica punitiva, se levada ao extremo, pode legitimar um Estado de exceção disfarçado de lei.

O Marco Legal do Combate ao Crime Organizado, concebido para ser uma ferramenta de justiça, pode tornar-se um marco de controle social. E, se a pauta avançar na direção da criminalização ampla, incluindo narcotraficantes sob o rótulo de terroristas, o debate deixará o campo jurídico para entrar no terreno político, institucional e até diplomático.

O que se observa disso tudo é que há um abismo entre combater o crime e travar uma guerra. E o Brasil, nas palavras de meu interlocutor desta madrugada, parece se equilibrar na beira desse precipício.

………….

Marta Nobre é Editora Executiva de Notibras

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.