Minha Casa, Minha Dívida
Lula frustra eleitor nordestino de baixa renda ao tirar dinheiro e dar à classe média
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Jáder Filho, um oligarca paraense, está deixando os nordestinos de baixa renda soltando fogo pelas narinas. De quebra, esse povo sofrido começa a sinalizar querer distância do presidente Lula. Algo do tipo dar as costas, como o Diabo faz com a cruz. A verdade é que o presidente tem deixado frustrado o povo que lhe dá votos. Esse sentimento reina ao menos no sertão de Pernambuco, por onde andei nos últimos dias. Passeando de carro, a partir do Cabo de Santo Agostinho até Serrita, no alto serão, testemunhei um cenário triste. E de revolta.
Deixei o litoral com o dia amanhecendo. À tarde, parei em uma das cidades do interior. O sol então já corria para o horizonte, com a velocidade de suor na testa de retirante. No alpendre da venda de seu Epifânio, quatro bancos de madeira se alinhavam como soldados derrotados.
Sentados neles, cada qual com um copo de alumínio, estavam Zé Pequeno, Dona Creuza, Mané do INSS, o vereador Florismar e o radialista Djalminha, dono da rádio comunitária da cidade. De canto, encostado na parede como quem escuta com os olhos, Chico de Lurdinha fumava um cigarro de palha e deixava o mundo acontecer.
O assunto era o Minha Casa, Minha Vida. Os diálogos, pontualmente anotados, podem ser assim reproduzidos:
Zé Pequeno: “Minha Casa Minha Vida virou Minha Casa, Minha Hipoteca. Agora é pra doutor com salário de dez conto e SUV na garagem. E eu? Fico na rede, esperando promessa virar cimento.”
Dona Creuza (batendo com a mão na coxa esquerda), não deixou por menos: “Oxente! E a gente que acreditou nas palavras doces do Lula, feito mel de engenho? Disse que era pra pobre, pra nós… Agora até arquiteto vai ganhar apartamento com varanda gourmet.”
Por sua vez, Mané do INSS, um senhor de meia-idade, ranzinza, disse, com a mão trêmula segurando o copo, que “isso é que dá votar com o coração e não com a planilha. Os rico tão entrando pela porta da frente e a gente, de novo, pela janela… quando tem janela!”
De Florismar, que tentava ostentar uma pose de liderança, ouvi algo de quem parecia estar em um palanque em período eleitoral, com uma estrela no peito encimada com um 13 em destaque: “Companheiros, calma! Isso é uma readequação orçamentária para ampliar o espectro da classe beneficiada… Classe média também sofre!”
O riso seco de Djalminha interrompeu o vereador:
“Sofre? Classe média sofre é pra escolher o vinho do mês. Aqui a gente sofre pra não morrer com a goteira na testa. Florismar, diga a verdade. Vocês desandaram foi a puxar sardinha pro pessoal do Sudeste, os do apartamento, da Faria Lima, né não?”
Zé Pequeno desabafou:
“Meu filho mora em Juazeiro, fez cadastro na Caixa, e sabe o que ofereceram? Um financiamento de 45 anos com entrada de 20 mil. Ele é garçom, porra! Vai vender rim pra dar entrada?”
A conversa, animada, fez com que me aproximasse e pedisse um refrigerante. Nesse momento ouvi Chico de Lurdinha, que falava baixo, como quem reza:
“Quem planta promessa colhe desilusão. Lula voltou, mas parece que esqueceu o caminho do beco.”
O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo barulho de um jegue ruminando no terreiro. Parecia rir.
Dona Creuza retomou a palavra, sugerindo que Lula mudasse o nome do programa: ‘Minha Casa, Minha Desistência’. A gente entra, sonha, e sai devendo até o suspiro”, justificou.
O vereador Florismar, já demonstrando incômodo, ajeitou o surrado boné vermelho do PT, desabafou, com a voz quase alterada, enfatizando que seus companheiros ‘têm memória curta’. E frisou: “foi esse homem que trouxe luz, água e dignidade pra gente.”
Inconformado, Djalminha, levantando-se do banco com raiva, questionou:
“Luz? Tão é apagando a nossa esperança com discurso de palanque. Essa nova fase do programa é tão popular quanto imposto novo. Eu falo amanhã na rádio!”
E saiu pisando forte, como se cada pegada quisesse furar o solo rachado.
Zé Pequeno, depois de um breve suspiro, afirmou que “no fim das contas, casa popular é igual a milagre: só acontece pra quem já nasceu abençoado.”
Chico puxou outra tragada, olhou o céu limpo e completou:
“No sertão, promessa não constrói parede. Constrói raiva.”
Como a noite avançava rápido, despedi-me, troquei número de telefones com o radialista, retornei ao carro e segui para meu destino, ainda distante cerca de 80 quilômetros. Enfim, em Serrita, me permiti descansar após uma longa ducha em uma aconchegante pousada da cidade.
Feriado no Nordeste na terça, 24, quando se comemora o São João, recebi uma longa mensagem do meu coleguinha radialista Djalminha.
O texto começava dizendo que dois dias depois do bate-boca sobre a nova imagem de Lula, algo como um Robin Hood pelo avesso que tira dos pobres para dar aos ricos, a cidadezinha foi sacudida por uma raridade: uma audiência pública organizada às pressas na escola municipal. Como tema, “Habitação e os Novos Rumos do Minha Casa Minha Vida”. Na prática, afirmava Djalminha, era mais um comício disfarçado. No palco improvisado, uma mesa de plástico, três microfones chiando e sete copos com água quente. Atrás dela, um cartaz mal colado: “MCMV: Inclusão para Todos”.
Segue o relato do dirigente da rádio comunitária:
Entre o público, 87 cadeiras de plástico, quase todas ocupadas por gente suada, desconfiada e cansada de esperar.
No palanque, os personagens já estavam postos: o vereador Florismar, o engenheiro da Caixa Econômica, doutor Laerte, a deputada estadual Jussara, o líder comunitário Seu Bibiano, e a pastora Leninha da Promessa, que trazia na mão uma Bíblia e um panfleto da próxima vigília.
Na plateia, voltavam os de sempre: Dona Creuza, Zé Pequeno, Chico de Lurdinha, Mané do INSS e agora também o jovem Iuri, entregador de aplicativo e formado em Geografia, e Maria Quentinha, cozinheira e empreendedora que vendia marmitas pra obra que nunca vinha.
O microfone chia. O primeiro a falar é o engenheiro doutor Laerte:
— Doutor Laerte (com voz de quem nunca suou na vida):
“O novo modelo do programa visa atender famílias com renda de até R$ 8 mil. Estamos modernizando o acesso à moradia digna, com padrão construtivo elevado e foco em sustentabilidade.”
Dona Creuza, gritando do fundão da plateia, provocou gargalhadas ao dizer que “sustentável é minha lona azul, que sustenta chuva há cinco anos! O senhor já morou em barro, doutor?”
Florismar, tentando acalmar os ânimos, exclamou, na ponta dos pés:
– Vamos manter o respeito, companheira! O governo tá fazendo o que pode, num cenário de restrições fiscais…”
O vereador foi interrompido por Iuri, levantando com celular na mão:
– Restrições pra nós, né? Porque pra financiar prédio de rico, dinheiro apareceu. Tô aqui com o portal da transparência aberto. Quase meio bilhão pra construir condomínio em São Bernardo com piscina. Piscina, visse?!
Jussara, sem ter mais o que fazer, mostrado um sorriso geladoa, questionou o entregador por App:
– Vamos ter responsabilidade com as palavras, jovem. O programa foi ampliado para contemplar a diversidade socioeconômica brasileira.
Chico de Lurdinha, quase sem abrir a boca, não deixou de reagir:
– Diversidade é nós se lascando enquanto eles nadam…
Maria Quentinha, com uma marmita na mão, rodou a baiana, afirmando que comprou um freezer novo achando que ia vender quentinha pra pedreiro. Depois caiu na realidade: “Só que nem pedreiro tem, porque nem obra começou!”
A pastora Leninha da Promessa levantou-se, bíblia numa mão, microfone na outra:
— A Palavra diz que na casa do Pai há muitas moradas. Mas aqui na Terra, parece que só tem vaga pro povo de condomínio fechado. Irmãos, vamos orar para que caia do céu não só o Espírito, mas também o financiamento com juros baixos!
Seguiram-se risos abafados. Murmúrios. Um homem do lado de fora gritou:
— Aqui só caiu foi a esperança!
Seu Bibiano, batendo na mesa, pediu silêncio e disse, entre soluços, que ninguém quer migalha, apenas um teto. E acrescentou: “Aqui tem gente com três gerações morando embaixo do mesmo telhado furado. Se não tem casa pra nós, então o nome do programa devia ser ‘Minha Casa, Minha Mentira!’”
A plateia, conta o radialista, se levantou em palmas. A deputada levantou-se, ajeitou o tailleur e se despediu, dizendo que tinha uma agenda a cumprir em Petrolina.
“Gravei tudo – revela Djalminha. “Vai pro ar amanhã. O povo não vai ser feito de besta calada. Se a casa não vem, a revolta vai!”, escreveu na mensagem, em tom ameaçador.
O ‘coleguinha’ lá do alto serão encerra seu relato citando Chico de Lurdinha, que voltou a olhar para o céu. Dessa vez, uma nuvem se formava. Sorridente, como quem sabe das coisas do alto da sua longevidade, exclamou enquanto o ambiente era esvaziado:
– Tá armando trovoada… ou é chuva, ou é revolução.
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
