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102 anos

Manjar das letras eternas e magias de Geraldo Seabra

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Autor/Imagem:
Giovanni Seabra, com a colaboração de José Seabra Neto - Foto Acervo da Família

Final dos anos 50 do século passado. Era uma sala pequenina, tímida como quem chega de mansinho à festa da vida, numa casa igualmente modesta, no coração acolhedor do bairro de Casa Forte, em Recife. A noite já passava das dez, e mesmo assim os olhos das crianças brilhavam como vagalumes inquietos — não por sono, mas por expectativa. Elas aguardavam, com uma reverência que só os inocentes conhecem, a chegada do Jornal do Commércio do dia seguinte.

E lá vinha ele, o herói cotidiano, com o jornal debaixo do braço e o perfume inconfundível da tinta fresca das velhas rotativas acompanhando cada passo. Geraldo Seabra, pai, jornalista, mago — e, para nós, filhos e filhas, uma espécie de Titã das palavras — entrava em cena como quem trazia o próprio Olimpo embrulhado em papel impresso.

Havia abraços, beijos, tumulto e afeto. Disputávamos o jornal como cavaleiros por um troféu sagrado, mesmo que fosse apenas para espiar as manchetes da primeira página. Naquela casa simples e cheia de amor, entre estantes improvisadas e mesas que mal aguentavam o peso dos livros, fomos herdeiros de uma das maiores fortunas: o gosto pela leitura.

Não era raro tropeçar num Dante Alighieri, que nos arrastava aos terrores do Inferno e nos fazia sonhar com uma chance redentora no Purgatório. Alexandre Dumas nos fazia mosqueteiros por algumas tardes, e Cervantes — ah, Cervantes! — nos ensinava que até a loucura pode ter dignidade. Moby Dick, Barsa, almanaques, efemérides, livros de alquimia e astrologia conviviam conosco como se fossem parte da família. E, de certo modo, eram.

Brinquedos eram poucos. Roupas, o suficiente. Mas pão — ah, o pão! — nunca faltava. No final da tarde, caminhávamos juntos até a padaria do vovô José Seabra, e voltávamos com os pães quentinhos, embrulhados em sacos de pano, feitos de massa pura e sem bromato. À mesa, além do pão, havia às vezes cuscuz, outras vezes fruta-pão. Mas sempre, sempre havia fartura de afeto.

Pelos cantos da casa, pilhas de papéis rabiscados, calendários astrais, florais de Bach e frascos de homeopatia escondidos como pequenos segredos mágicos. Era comum recebermos visitas ilustres — Paulo Freire, o educador da esperança, Albino, o médico das plantas, e Marabá, o astrólogo de mil mapas celestes.

Um salto no tempo — não por falta de fatos, mas por falta de espaço nesta crônica — nos leva ao Planalto Central, à jovem Brasília dos anos 60. Foi ali, sob o comando da matriarca Madalena, que nossa família de retirantes nordestinos encontrou nova morada e reencontrou os braços de Geraldo Seabra, agora diretor da Última Hora, sucursal da capital.

O que não sabíamos, ao deixar os quintais de terra batida de Casa Forte rumo ao cerrado vermelho da nova capital, é que também embarcaríamos num choque de mundos. Brasília era um sonho concreto, mas seus blocos de cimento frio abrigavam crianças vindas de todos os cantos — e entre elas, muitas do chamado Sul Maravilha, com seus sotaques cortantes, brinquedos importados e modos de quem parecia viver em outro Brasil.

Nós, pequenos nordestinos de pés descalços e vocabulário carregado de “oxente” e “visse”, víamos nos colegas sulistas uma espécie de espelho embaçado, onde nosso jeito de ser era ora curiosidade, ora motivo de estranhamento. Mas aos poucos, com a mesma naturalidade com que misturávamos cuscuz ao leite de coco, fomos nos misturando também aos outros, ensinando e aprendendo, até que nossas diferenças se tornaram tempero — e não muro.

Mas, voltemos ao aniversariante. Se antes era jornalista, ali Geraldo Seabra assumia também o manto de Mago. Num ambiente solene, em semicírculo ao redor de uma mesa coberta com toalha branca, ele nos iniciava no sagrado. Havia taça, adaga, bastão, alfarrábios e velas — um verdadeiro altar de sabedoria. Nascia o Colégio dos Magos de Brasília, onde magos, bruxas, aprendizes e curiosos bebiam da fonte eterna do conhecimento oculto.

O tempo passou, mas a seiva continua viva. Filhos, netos e seguidores atenderam ao chamado — tornaram-se tarólogos, astrólogos, quirólogos, sacerdotisas, jornalistas, professores… todos reunidos sob a mesma estrela que um dia brilhou nos olhos do Mago Geraldo. O Colégio dos Magos virou Colégio dos Magos e Sacerdotisas, mas o coração era o mesmo.

Quando partiu, partiu como queria: sem choro nem vela, apenas com a leveza de uma fita amarela com o nome dela — o amor eterno que o acompanhava. Hoje, no dia em que completaria 102 anos, temos certeza de que o Mago Geraldo continua enviando mensagens divinas das estrelas mais altas do céu.

Antes de partir, ele nos deixou sua última lição:

“Chego aos oitenta satisfeito, realizado, feliz. Ensinei o que sabia. Vi médicos, engenheiros, donas de casa e trabalhadores buscando o que é eterno: a consciência desperta. Agora quero que mais pessoas aprendam, se iluminem, despertem. Porque a magia, meus filhos, não é feitiço: é amor em movimento.”

E nós seguimos. De olhos atentos, como crianças esperando o jornal, seguimos a estrela de Geraldo Seabra, o homem que nos deu o pão, os livros, a magia — e um amor que não cabe em palavras.

Assim é. Assim foi. E assim será.

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Giovanni de Farias Seabra, doutor em Geografia, professor titular da UFPB

José Seabra Neto, jornalista, diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras

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