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O Lado B da Literatura

Manuel Bandeira, que encantou o Rio e o Brasil, pode ficar a ver navios

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Cassiano Condé - Foto Acervo Pessoal/Reprodução

Às vezes é lamentável como nós, brasileiros, tratamos as memórias. Li estarrecido no jornal que túmulos do cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, serão retomados pela administração privada do local, pois os donos dos jazigos perpétuos não são mais localizados e não pagam uma taxa anual. O que resta, na história, de pessoas extintas dos anos de 1860 para frente, será demolido.

Em outras cidades do mundo, cemitérios antigos são atração turística. Lembrei-me de um antigo cemitério judeu que visitei em Veneza, com seus túmulos dos séculos XIV a XVII. Será que a edilidade local estaria cobrando taxas, sob pena de desalojar seus ocupantes? E nem se poderia dizer que em Veneza há mais espaço que no Rio de Janeiro, a pretexto de alegar a exiguidade do ambiente para novas sepulturas.

Creio que um dos habitantes ilustres do citado cemitério carioca não deve ser molestado. Trata-se de Manuel Bandeira, poeta maior de nossas letras, cuja sepultura visitei uma vez em que estive no Rio. Ele repousa no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, de que era membro, desde 13 de outubro de 1968, no nicho 61. Ele e os demais membros da ABL têm o sossego garantido da última morada. Creio que nenhuma administração vá cometer o desatino de lhes perturbar o descanso.

Afora esse local, alguma referência sobre o poeta também pode ser vista na portaria do Edifício São Miguel, na avenida Beira Mar 406, bem pertinho da ABL e do Vilarino, famoso bar onde nasceu a bossa nova. Ali foi um dos endereços de Manuel Bandeira na Cidade Maravilhosa – o penúltimo, para ser mais preciso, pois, quando morreu, morava na Aires Saldanha 72, em Copacabana, esquina com Miguel Lemos.

Bandeira morou em dois apartamentos no São Miguel. O primeiro era voltado para o pátio que servia de estacionamento, mas também abrigava monturos de lixo, onde um homem, feito bicho, engolia qualquer coisa que nele encontrasse, como mostrado nos versos de “O Bicho”, em “Belo Belo”, de 1948.

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

Depois, mudou-se para um outro, com vista livre. Este, voltado para a Baía de Guanabara, o Aterro do Flamengo e o aeroporto Santos Dumont, apareceu lindamente em sua lira. Era nele que o poeta tomava lições de partir, como ele diz no poema “Lua Nova”, publicado em “Opus 10”, de 1952:

(…) Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
– Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade. (…)

Esse prédio é mostrado no curta-metragem realizado em 1959, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, em que Bandeira aparece preparando o próprio café da manhã e se vestindo para sair, enquanto sua voz recita poemas antológicos. Vale a pena assistir, encontra-se no YouTube, sob o título “O Poeta do Castelo” (https://www.youtube.com/watch?v=kFB2WQWniyM&t=100s).

Não seria nada mal se o apartamento do bardo fosse convertido em um pequeno museu, aberto à visitação, como tantos congêneres na Europa. Mas não creio que isso aconteça, infelizmente, dado o pouco prestígio que a história tem entre nós.

O Brasil, infelizmente, ainda hesita em transformar em patrimônio vivo aquilo que é imortal na palavra. O apartamento de Bandeira, como sua poesia, guarda um silêncio cheio de história – que talvez jamais se quebre em homenagem. Mas enquanto houver quem leia e escreva com a alma, como ele, sua presença continuará pairando sobre os versos e as janelas do Rio.

…………………….

Cassiano Condé, 81, gaúcho, deixou de teclar reportagens nas redações por onde passou. Agora finca os pés nas areias da Praia do Cassino, em Rio Grande, onde extrai pérolas que se transformam em crônicas.

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