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Vida que segue

Maratona de Almerinda retrata odisseia do povo trabalhador

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martinez - Foto Maracello Casal Jr

Almerinda foi enxotada da cama pela própria culpa por dormir demais naquele dia. Não que fossem tantas horas de sono, pois mal havia chegado do trabalho na noite anterior, após mais de duas horas tentando manter as pestanas atentas enquanto se equilibrava, em pé, no meio daquele monte de gente chamada povo, que se apertava no ônibus. No entanto, não há espaço para descanso além da conta para quem labuta em troca do mínimo.

Já nem se lembrava de um dia em que não fosse tamanha correria. Não tinha tempo nem para ela, esmalte nas unhas era luxo. Um desperdício! Vivia a lavar louça, chão, roupa, toda sujeira feita por outros. Desde sempre foi assim, até na aurora da vida, quando era puxada pela mão apressada da mãe até a casa dos patrões. Acabou por tomar o lugar dela, já que, enfartada, a velha mal conseguia se levantar da cama ao lado.

Aos 30, continuava solteira, sem filhos, a mãe para cuidar. Alguns namoricos breves, que, por raros minutos, davam ao corpo sofrido um pouco de alegria. Enquanto a água do café esquentava, procurou se lembrar do último. Correu os meses para trás, mas antes que pudesse recordar do derradeiro beijo, percebeu que a água já havia fervido. Preparou o café, cortou o pão dormido, passou um pouco de margarina. Não fez menção de reclamar do simplório dejejum, só conhecia aquele.

Passos apertados a levaram para o ponto de ônibus, onde tantos outros idênticos aguardavam o coletivo, que já apontava na esquina, cambaleando entre buracos na rua, como se fosse um capoeirista, que tentava impedir um chute ali, um soco acolá. Como de costume, Almerinda não conseguiu um lugar para se sentar. Foi em pé, a mão firme no ferro, junta a tantas outras. Os passageiros, de tão grudados, pareciam uma massa, que, aos solavancos, era carregada e despejada ao longo do caminho.

Quase duas horas em pé fizeram Almerinda fechar os olhos e cochilar, talvez na tentativa de sonhar. Não havia sonho para sonhar. Não naquela vida! Vida? Foi despertada por um “Dá licença!” Encolheu o corpo sofrido ainda mais, enquanto uma senhora tentava passar. Bocejou ao mesmo tempo em que percebeu que deveria descer dali a dois pontos. Foi se espremendo para chegar o mais próximo da saída.

Não demorou muito, foi despejada na rua, onde caminhou mais alguns passos até chegar ao edifício cheio de grades. O porteiro logo a reconheceu, acionou o botãozinho de salvo conduto, que abriu passagem para a empregada do apartamento 901. Almerinda cumprimentou o funcionário com um sorriso não convincente, ao mesmo tempo em que ele disse: “O elevador de serviço está quebrado”.

Para não enfrentar olhares de desaprovação, ela tomou a decisão de enfrentar os inúmeros lances de escada. Chegou quase esbaforida. Tocou a campainha, ao mesmo tempo em que tomou ciência das horas: 6h05! Cinco minutos atrasada! A patroa, irritada, abriu a porta e, já de costas para a empregada, disse: “Quem acorda cedo toma água fresca, Almerinda!”

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