Peixotos e penáceos
Marianne convidou o casal para uma ceia de Natal em Paris
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Olga e Lúcio, casados de papel passado, moravam em Paris. Faziam pós-graduação na Sorbonne, ela em filosofia, ele em sociologia. Aos poucos, fizeram alguns amigos e amigas locais. Foi uma dessas amigas francesas, Marianne, quem os convidou a participar da ceia de Natal no apartamento de Jean e Marie France, seus primos.
Lúcio ficou animado pela oportunidade de ver de perto os mecanismos internos de uma família francesa. Era preciso, porém, permanecer fiel a algumas normas de etiqueta, para não dar a impressão de ser um casal de selvagens vindo de um país de selvagens.
– Olga, uma ceia formal com certeza vai começar com uma entrada, depois um peixe, uma ave, finalmente uma carne. Você vai pelo menos fingir que prova cada prato?
– Amor, você sabe que não como peixotos nem penáceos (era assim que Olga se referia desdenhosamente a peixes e aves). Nem frutos do mar.
Lúcio deu de ombros, resignado, e não insistiu.
Na noite de Natal, chegaram pontualmente, às 21 horas, ao apartamento de Marie France e Jean. Marianne já estava lá. Lúcio entregou uma garrafa de um excelente (e caro) vinho tinto ao anfitrião, um buquê de lindas (e caras) flores à anfitriã, pegou um aperitivo, sentou-se o sofá e esperou o início da ceia.
E o chabu começou. O silêncio baixou pesado. Para quebrá-lo, Jean colocou no aparelho de som um disco de um comediante francês – uma versão gaulesa de José Vasconcelos. E passou a rir das piadas, por vezes acompanhado pelas duas nativas. Olga, que tinha um francês bem melhor que o de Lúcio, por vezes sorria. Nessas ocasiões, ele sorria junto; mas na maior parte do tempo, sem entender as piadas, ficava sério. E bebia.
Quando a ceia começou. Lúcio já estava pra lá de Marrakesch. Veio a entrada, um magnífico patê de fígado de ganso. Todos atacaram a iguaria. Menos Olga, que não comia penáceo, e muito menos fígado de penáceo. Embaraçado, Lúcio bebeu mais ainda. E mais rápido.
Veio o peixe, uma truta ao molho de amêndoas, mesma coisa. Olga firme na recusa do peixoto, Lúcio firme na birita.
Depois chegou a ave, uma galinha d’angola, que os franceses chamam de “pintade”. Olga ignorou o penáceo; seu marido, irremediavelmente bêbado, teve de se controlar pra não fazer piadinhas com os apreciadores da pintada, do tipo “você pinta como eu pinto?” Conseguiu – e depois apagou, a mostra de autocontrole foi sua última lembrança da ceia.
Acordou algum tempo depois, na cama de Marie France e Jean. Não sabia quanto tempo dormira, deixara o relógio em casa para parecer menos burguês, menos escravo do tempo, mais despojado. Sentia-se estranhamente bem, num nirvana etílico, como se tivesse descartado todos os seus demônios.
Foi pra sala de jantar, viu que a ceia já havia terminado. Sem saber como agir, sorriu para todos; a anfitriã sorriu de volta e, sem dizer palavra, deu-lhe um copo cheio de água até a borda. Mensagens claras: ”Hidrate-se!” e “Não chegue perto de álcool o resto a noite!”
Em seguida, cheios de tato, os franceses retiraram-se, dando a Olga e Lúcio privacidade para conversar. Mas não houve diálogo, a mulher deu-lhe uma sonora bofetada.
– Monstro! Foi me trair logo com a Isildinha, minha melhor amiga! Nosso casamento acabou! – e saiu sem se despedir, batendo a porta com força.
“Deuses, será que confessei tudo?”, pensou. “Se fiz isso, ferrou de vez”. Mas, no nirvana de álcool em que se encontrava, não ligou muito. O que não faltavam eram mulheres doidinhas para transar. A começar pela Izildinha.
Após essa reflexão, tratou de despedir-se e ir embora. Passou por um quarto de porta entreaberta, avistou Marianne, chamou-a, ela se aproximou – e o beijou apaixonadamente.
-Eu sabia que me desejavas, era fácil perceber – murmurou a amiga autopromovida a amante. – Mas que lindas palavras de amor me dirigiste esta noite! Sutil, para tua mulher não entender, mas a mensagem foi recebida. – Beijou-o muitas e muitas vezes e concluiu:
– Agora vais voltar pra casa e terminar a farsa – palavras tuas – com Olga. Logo estarás em meus braços. E advirto-te, sou ciumenta!
“Lascou, perdi uma esposa e ganhei, no mínimo, uma noiva possessiva”, disse para si mesmo, com um sorriso meio amargo e cada vez menos etílico. O pior é que sabia o que iria rolar, acontecera com vários amigos seus. Seria exibido como um bicho exótico aos amigos da gaulesa e, um dia qualquer, sem mais nem menos, levaria um pé na bunda.
Lucio pensou nos tupinamboucs, termo com eram designados os tupinambás levados para a corte francesa nas décadas de 1550 e 1560. Era como se via – um canibal selvagem a ser exibido aos sofisticados europeus. Mas não, os canibais eram eles. Iriam devorá-los na cama e no convívio social e, quando se enfastiassem, jogariam fora os ossinhos, o que sobrasse.
De repente, o chavão “a Europa se curva ante o Brasil” ganhou novo sentido. “Curva-se”, concluiu Lúcio, “para ver mais de perto a presa, curva-se para escolher as carninhas tenras a serem consumidas primeiro, no banquete antropofágico”.