Sentir
Médico é anjo que usa de palavras dóceis para tentar nos manter vivos
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Fiquei pensando na conversa que tive com meu médico. Perguntei por que diagnósticos fatais demoram tanto a sair, por que eu precisei passar a vida colecionando diagnósticos, remédios e dores. Disse a ele, quase num sussurro, que às vezes eu nem era louca me enlouqueceram. As dores só vinham depois. Ele, com uma calma que parecia de quem já escutou esse lamento muitas vezes, me disse: “Diagnósticos precoces são assim. Nem toda medicina está preparada. E os remédios escondiam.”
Depois respirou fundo e completou: “Mas o importante é que você está aqui.”
Eu respondi: “Quase parando.”
E ele insistiu, olhando nos meus olhos: “Mas vivendo. Sentindo a dor, o choro, o desespero, o amor, a traição. Agradeça porque tiramos a sedação e você passou a sentir de verdade. Dói agora, bastante, não é? Mas você sente. Você se sente. E isso, Emanuelle, é mais do que viver cem anos. Sentir.”
Fiquei com essa palavra latejando: sentir.
Sentir dói. Sentir arranca a pele, arranca máscaras. Mas sentir também é ter um corpo ainda habitável, um coração que ainda pulsa, uma história que ainda se escreve. Sentir é estar no mundo, mesmo quando o mundo treme, mesmo quando a vida fica de ponta-cabeça.
A vida anestesiada não tem cheiro nem gosto. O café não aquece, o abraço não chega, a lágrima não lava. A dor vem junto, sim, mas ela é prova de que há nervos, veias, presença. Estar desperta é mais cruel, mas também mais verdadeiro. É chorar de verdade, rir de verdade, amar de verdade.
Hoje entendo: a sedação não me poupava; me roubava. Era um silêncio espesso em que eu já não sabia se existia. Agora dói e doendo eu percebo que estou aqui. Um corpo cansado, sim, mas corpo. Uma vida que se arrasta, sim, mas vida. Um coração ferido, mas coração.
Por isso hoje, depois de tanto, eu só consigo dizer: não me seda nunca mais.
Deixe-me sentir, ainda que doa. Deixe-me chorar, ainda que arda. Deixe-me tremer, ainda que pareça fraqueza. Sentir é existir, e existir assim inteira, consciente é mais do que qualquer promessa de eternidade sem dor.
Sentir dói. Mas sentir, finalmente, é viver.