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"Dedodurismo" inventado

Menino Maluquinho condenou à morte criminoso sem crime

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Júnior - Foto de Arquivo

Inquestionável do ponto de vista artístico, Ziraldo foi um poço de criatividade e de talento para o bem e para o mal. No país do faz de conta, é sempre bom tentar esquecer um pouco a hipocrisia, embora a dissimulação e o fingimento dos verdadeiros sentimentos sejam normalmente pratos que, dependendo da ocasião, se servem quentes ou frios. Com todo respeito à memória do grande cartunista e escritor, Ziraldo sempre manifestou uma opinião que não tinha sobre determinadas pessoas. Uma de suas vítimas preferidas foi Wilson Simonal de Castro, um dos cinco ou seis melhores cantores e compositores que o Brasil já produziu.

Ziraldo Alves Pinto, o eterno Menino Maluquinho, que merecidamente recebeu honras e glórias da mídia nacional nesse fim de semana, é o mesmo que, em 1971, iniciou a campanha que destruiu a carreira artística e posteriormente a vida do cantor negro e pobre Wilson Simonal, apresentado injustamente e sem qualquer prova como dedo duro da ditadura. E desse feito o mineiro de Caratinga se orgulhava publicamente. Foi afirmando tal asneira que ele morreu para mim. Ele e o também cartunista Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, ou simplesmente Jaguar, autores da célebre capa do semanário O Pasquim apresentando o cantor como delator de militantes de esquerda, cujo fim era a morte sob tortura nas masmorras do regime militar.

Para quem não sabe ou fez questão de esquecer, a destruição de Simonal ocorreu porque o debochado Ziraldo e companhia não aceitavam o sucesso do cantor. “Simonal deu azar de estar em grande evidência na época do maior patrulhamento ideológico. O Pasquim não admitia uma mijada fora do penico. Simonal era tolo, se achava o rei da cocada preta, coitado. Era metido, insuportável”. Mais uma vez respeitando a memória do dito cujo, Ziraldo também era tolo e jamais foi inocente na acusação a Wilson Simonal que, de ídolo nacional, virou dedo duro da ditadura por três lamentáveis razões: era pobre, negro e se ascendeu socialmente a ponto de, besta ou não, ter mordomo para servi-lo e à família caviar quase diariamente.

Enfim, o crime praticado por Simonal foi ter ficado rico em um período de pobreza financeira, espiritual e de caráter quase absolutas no Brasil. Simonal jamais foi julgado ou condenado, mas foi massacrado pela turma do esquerdista patológico Pasquim e pela maioria dos artistas de então. O Brasil e os ídolos daquela fase negra nunca o perdoaram por um ato que ele não cometeu. Como mentir é a essência humana, estou mentindo. Em setembro de 1969, no Maracanãzinho, Simonal roubou a cena de Sérgio Mendes, um dos queridinhos dos “donzelos” da mídia carioca. Apoteótico e incendiário, o show de Simona levou ao delírio cerca de 40 mil pessoas. A atração principal era Sérgio Mendes, mas como dizer isso ao público regido por Simonal na música Meu limão, meu limoeiro. Mendes não fez o show.

Um dos cantores mais populares do país na década de 60, Simonal foi levado ao ostracismo devido a uma bola de neve de suspeitas e acusações pra lá de suspeitas. Tudo começou porque o criminoso em questão havia sido escolhido o cantor oficial da Seleção Brasileira na vitoriosa campanha da Copa do Mundo do México, em 1970, quando o Brasil se sagrou tricampeão mundial de futebol. Foi escolhido porque Simonal tinha um título que nenhum cantante tinha: o Pelé dos rádios. Bem antes de morrer, Ziraldo disse, também publicamente, que Simonal tinha sido inocentado. Inocentado de que se ele nunca cometeu crime algum? Como um filho de empregada doméstica poderia ter a pachorra de virar garoto propaganda da multinacional Shell, ter Mercedes na garagem da mansão e ser amigo da diva norte-americana Sarah Vaughan?

A inveja da elite e da mídia influente foi o início do fim de Simonal. Cantor, cantor e cantor, Wilson Simonal, conforme o maestro Cesar Camargo Mariano, não tinha conhecimento sobre a situação política real do país. Além dos crimes de ser um preto milionário e de ter uma imensa popularidade, ele cometeu o erro de achar que ser amigo dos “home” era legal”. O Pasquim ilustrando um dedo negro apontado para a direita, sob legenda de que era “o magnífico e ereto dedo” de Simonal enterrou o ídolo de uma geração. Ninguém sabe o duro que Simonal deu, mas todos porque Ziraldo publicou as charges sobre o “dedodurismo” do cantor. Errar faz parte da essência humana, mas é imperdoável nunca assumir o erro como desvio de conduta. Rei do suingue, Simonal morreu, aos 62 anos, em junho de 2000. Teve de esperar 24 anos para solfejar no ouvido de Ziraldo…Mamãe Passou Açúcar em Mim.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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