Mãe e filho
Menino sonha com a mãe pela primeira vez
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Naquela noite, Afrânio sonhou com sua mãe. Tanto quanto soubesse, era a primeira vez que isso acontecia.
Ela morrera do coração em 1987, quando ele estava com 36 anos e ela, apenas 64. Seu último encontro deixara-lhe lembranças amargas. Ele morava no Rio e havia levado a filha de 6 anos para ficar algum tempo na casa da avó, em Juiz de Fora. Certo dia, recebeu um telefonema da mãe, dona Leda.
– Filho, a Juliana pediu pra falar com você. Beijos, muitas saudades.
Atendeu e ouviu a voz chorosa da menina, falando baixinho para não ser ouvida pela avó.
– Papai, vem me buscar. Quero voltar pra casa!
Pelo tom, percebeu que não era birra de criança. Entrou no carro e foi para sua cidade natal. Juliana contou-lhe, sempre em voz baixa, que a avó havia ralhado muito com ela; ele sabia que sua mãe não escondia sua predileção pela outra neta, filha de sua irmã, e concordou em voltar ao Rio com a menina. Na despedida, falou a dona Leda sobre o motivo das férias encurtadas e pronunciou as palavras que depois o atormentaram:
– É chato isso, mãe, ser brusca com Juliana. A gente vem tão pouco aqui, uma vez na vida e outra na morte…
Durante a viagem, a menina contou-lhe que a avó havia passado mal e ficado com os lábios azulados (Juliana falou “com a boca azul”). Preocupado, pensou em ligar, implorar que dona Leda procurasse um médico, mas não ligou no mesmo dia, nem no seguinte, acabou esquecendo. Uma semana depois voltou a Juiz de Fora, para o enterro da mãe. Chorou muito, de saudade e de culpa, pela omissão em ligar e por aquelas palavras de premonição.
No sonho, não houve a menor referência a esse episódio. A mãe apareceu transfigurada, não uma senhora de mais de 60 anos e sim uma mulher na flor da idade, bonita e poderosa. Afrânio percebeu as mudanças e as sintetizou em um comentário imbecil:
– Você cresceu, mãe.
Ela sorriu em silêncio. Não para ele, e sim para o universo. Ele sentiu que ela havia evoluído no plano astral, tornara-se uma entidade, ou estava em vias de. Adeptos do candomblé – e leitores de Jorge Amado – talvez a chamassem de encantada. O sorriso era um reconhecimento de sua transformação, de seus atributos acrescidos. Não falou uma só palavra com o filho, apenas o olhou por algum tempo, sem julgá-lo, sem ternura.
Uma semana depois, ele voltou a sonhar com a mãe. Ela estava tão jovem e poderosa quanto antes, mas dessa vez olhou-o carinhosamente e murmurou:
– Vem comigo.
Afrânio pensou em perguntar “Aonde vamos?”, mas não teve tempo. Aliás, este parecia estar correndo para trás. Percebeu que estava voltando à infância, até se tornar um menininho de calças curtas, que segurou, confiante, a mão que dona Leda lhe estendia.
– Vamos, mamãe.
Mãe e filho partiram para o plano astral. Atrás, na cama, ficou o corpo sem vida de um idoso, vítima de um infarto fulminante.