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Gatos pardos

‘Meu caro amigo, a coisa por aqui tá preta, mas a gente vai levando’

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Prdução Editoria de Artes/IA

O português é um idioma falado em cinco continentes. Cheia de pegadinhas e até contradições, a língua é uma das mais ricas em expressões, em figuras de linguagem e também em frases aparentemente desconexas, mas de resultado lógico. Por exemplo, quem nunca comeu gato por lebre? Quem nunca segurou uma batata quente nas mãos? E quem nunca descascou um abacaxi fictício, encheu linguiça, chorou as pitangas ou comeu o pão que o diabo amassou? Acho que todos os viventes já passaram do ponto, comeram mingau pelas beiradas, cozinharam o galo em banho maria e deram a mão à palmatória.

Os que já engoliram sapo e nunca tiveram necessidade de vender um peixe inexistente certamente jamais conseguiriam encher o papo de grão em grão ou fazer uma omelete sem quebrar os ovos da galinha, da pata ou os do pato. É tudo uma questão de semântica. Não custa lembrar que só metendo a mão na massa é que descobriremos que a rapadura é doce, mas não é mole. E não adianta estar com a faca e o queijo na mão. Afinal, para pirar na batatinha basta pisar nos tomates, viajar na maionese e enfiar o pé na jaca.

Sou do tempo do arco da velha, da Maria Cachucha e da época em que chovia a potes. Por isso, sei que, às vezes, nem com reza forte conseguimos atingir o Nirvana ou recuperar o leite derramado. Aí é caixão e vela preta. Macacos me mordam, mas melhor ficar a ver navios do que chorar lágrimas de crocodilo ou esperar a galinha criar dentes. Tenho memória de elefante, mas não me lembro se foi à sombra da bananeira ou com a cabeça na lua que aprendi que, à noite, todos os gatos são pardos

Como não nasci com o rabo virado para a lua, desde o berço aprendi a puxar a brasa para minha sardinha, mas não a tirar o tapete de ninguém, pois sempre achei que afobado come cru e que não há nada como um dia atrás do outro. Ainda menino, descobri que a carne é fraca e que todos somos farinha do mesmo saco. Por essa razão, com a calma de um jabuti, percebi que o pepino era só meu. Informado de que pensando morreu um burro, mesmo sem a necessidade de trocar alhos por bugalhos, fui à luta para engrossar meu caldo. Eu sabia que ninguém iria enxertar minha empada com azeitonas frescas.

Ao longo da vida, sempre soube que quem não arrisca não petisca. Daí, juntei a fome com a vontade de comer, transformei o impossível em algo provável, exatamente como procurar agulhas no palheiro e, como quem tem boca vai a Roma, todos os meus dias passaram a ser dia santo. Não tenho e jamais tive os olhos maiores do que a barriga. O que tenho é a pulga atrás da orelha. Não meto o bedelho na sopa quente de ninguém. Entretanto, se houver necessidade, mando tudo às favas e respondo com cobras e lagartos.

Vivo no Brasil colonizado pelos portugueses. Não cuspo no prato que comi, mas onde fui amarrar meu bode. Já me deu vontade de largar tudo e ir plantar batatas. Pensei duas vezes e conclui que não deixo meu país nem que a vaca tussa. Os portugas não sabem da missa à metade, mas o Brasil de hoje não é sopa no mel. Por aqui, dar o braço a torcer não é nada diante dos “patriotas” de meia tigela, para os quais pimenta nos olhos dos outros é refresco. Eles fazem ouvidos de mercador, passam o dia pensando na morte da bezerra ou se fingem de morto somente para comer a rabada do coveiro. A maioria deles pegou o bonde andando e já quer se sentar na janelinha. Deixa pra lá, porque, para eles, está chegando a hora H. É só aguardar o frigir dos ovos.

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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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