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Sem medo de ser feliz

Mobilização popular é caminho para enterrar bolsonarismo

Publicado

Autor/Imagem:
Roberto Amaral*

Consideram-se justas e consequentes as linhas políticas, e as palavras de ordem delas decorrentes, na medida em que atendem ao dado momento do processo social; este, por definição, é um movimento, um fazer-se e refazer-se, como as ondas do mar, que nunca são as mesmas. Não há, pois, coerência tática quando mantemos vigentes palavras de ordem, que, embora originalmente corretas, se apresentam num determinado momento como inadequadas em face do quadro de realidade mutante. Por consequência, não deve ser vista como contraditória ou incoerente, por si, a mudança de linha cuja correção atende a exigência de uma nova realidade política. Contrariamente, não mudar, em tal caso, equivaleria a confundir a forma com o conteúdo, a aparência com o real, ter o hábito pelo monge. A coerência que a História reclama não é de ordem formal, estática, posto que diz respeito à fidelidade de objetivos (e eficiência de meios), a interdependência entre princípios e fins. Em síntese: se muda a conjuntura, necessariamente há de mudar o caráter e o modus da intervenção do sujeito social.

Ao agente político, individual ou coletivo, cabe, sempre, escolher, tomar decisões, frequentemente em face de diversas alternativas, nem todas satisfatórias, contraditórias ou auto excludentes. Não há fórmulas nem réguas para medir a melhor opção. Em face de qualquer cenário há sempre prós e contras, há sempre riscos. Para decifrar a esfinge nem sempre estão preparadas as estruturas partidárias; muitas, paquidérmicas, custam a se adaptar à nova situação, e, assim, se prendem a palavras de ordem, que, se antes poderiam ser justas, no momento seguinte estão desatualizadas. A concentração de todas as expectativas de avanço do movimento popular nos eventuais resultados de um processo eleitoral futuro, ainda que relativamente próximo mas cujas condições de disputa são, hoje, aliás, desconhecidas, deixou de ser a estratégia mais correta das forças democráticas, as quais não podem deixar livre o campo para as operações do grande adversário, que, por sinal, logrou avanços nas pegadas de nosso recuo tático.

A escalada da extrema-direita — refletida no aguçamento da crise sanitária associada à crise econômica e social e às ameaças ao processo democrático-institucional — mudou a natureza do impasse e passou a exigir novas formas de luta, e a principal delas é o embate permanente. Essa alteração foi percebida pelos movimentos sociais que se anteciparam aos partidos, e os retiraram do recuo tático, trazendo-os para as ruas, onde as condições de luta são mais favoráveis às forças progressistas. A adesão de grandes parcelas da população, vindo às ruas em cerca de 250 cidades brasileiras no dia 29 de maio, diz do acerto do caminho escolhido, que precisa não ter volta. É o novo caminho, e por algum tempo certamente será o mais efetivo, mas não suprime nenhuma outra forma de ação. Ao contrário, o diferencial das forças progressistas reside exatamente em poder atuar, concomitantemente, e de forma contínua, nas mais diversas frentes.

De certa maneira se antecipando aos partidos, o movimento social (refiro-me especificamente às frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo) entendeu que o meio mais consequente de dar combate ao vírus era aprofundar a luta contra o agente de sua maior disseminação. A palavra de ordem, portanto, passou a ser “Fora Bolsonaro”, a síntese das palavras de ordem do movimento social, fecho da luta de todas as forças políticas que se alinham na oposição, cujo espectro ideológico deve alargar-se no prolongamento dos embates. O ponto de partida é a consciência, hoje compartilhada majoritariamente pela nação, de que o bolsonarismo (a associação do protofascismo com o neoliberalismo) é incompatível com nossos interesses de povo e país. Deter a continuidade desse projeto é, portanto, a tarefa prioritária.

Este é o objetivo guarda-chuva que compreende vários caminhos e muitas variantes, que vão do impeachment à vitória eleitoral de 2022, sem se fixar em nenhuma alternativa, mas lutando por intermédio de todas as vias ensejadas. Qualquer que seja a hipótese por configurar-se, porém, as que podem nos levar à ruptura necessária dependem da mobilização popular. Só ela poderá levar à cassação do mandato do capitão, porá o neoliberalismo na camisa-de-força de que carece, deterá a ação deletéria do Congresso, desconstituindo o pacto de 1988 e destruindo a economia nacional e os direitos dos trabalhadores. Só a mobilização popular evitará novos golpes judiciais e parlamentares como os que manipularam as eleições de 2018, só ela poderá assegurar a eleição de um candidato de centro-esquerda em 2022, só ela garantirá a posse desse candidato e a invulnerabilidade de seu mandato, assegurando, no governo, a execução do programa do candidato, o que não ocorreu no frustrado segundo mandato de Dilma Rousseff.

Não está implícita, nem de longe, na aparente reviravolta tática — a mobilização popular pela esquerda ainda em meio à pandemia –, a adesão ao negacionismo. Longe disso, a volta responsável às ruas, abandonadas desde 2013, é a primeira consequência da opção pelo combate sem tréguas ao bolsonarismo como tarefa prioritária das forças populares. Os meios são impostos pelas condições em que se trava a luta: a intolerância da grande mídia (as últimas ilusões de imparcialidade caíram por terra com a indecorosa cobertura dos jornalões e emissoras de TV às passeatas do 29 de maio); a fragilidade da oposição no Congresso, esmagada pelo rolo compressor do centrão; o aparelhamento das forças de segurança pelo golpismo; o poder judiciário e o ministério público como agentes da classe dominante, da qual são egressos seus membros; e o apoio dos fardados, guarda pretoriana do poder. A oposição, enfim, enfrenta a casa-grande, e o que ela representa de atraso e sujeição ao capital financeiro monopolizado. Esse combate, em face das provocações do capitão e sua choldra, estava a exigir a volta às ruas das grandes massas, embora permanecessem de pé as recomendações quanto ao uso de máscaras e as restrições às aglomerações, que os manifestantes buscaram observar como puderam.

Esses atos, com os riscos implícitos, jamais ignorados pelos seus organizadores, não resultam, portanto, de uma opção idealista, ou irresponsável, ou voluntarista, mas simplesmente respondem a exigências da atual etapa da luta, que está longe de seu cume. Os agentes da política não fazem necessariamente o que desejam; o papel das vontades individuais, e mesmo coletivas, cede espaço às condicionantes do processo histórico. No quadro de hoje, respeitadas todas as contingências, não há alternativa fora do acirramento da oposição ao bolsonarismo. Cabe aos partidos, de mãos dadas com o movimento social, conduzir o processo político. Praz aos céus que estejam todos à altura do desafio.

*Ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Lula

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